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No cinema contemporâneo encontramos na filmografia de
Lars Von Trier uma das investigações mais curiosas sobre o
enigma do feminino em suas diversas variações. Em seus
últimos filmes, o motor narrativo é conduzido por uma
mulher. A mãe cega que se sacrifica para curar o filho em
Dançando no Escuro (2000); a estrangeira que se submete à
comunidade em nome da Graça, em Dogville (2003); a esposa
em luto que, sob a terapêutica do marido, inunda-se por um
gozo mortífero, em Anticristo (2009).
Em Melancholia (2011), temos uma trama especialmente
sugestiva para a resposta à questão: como morrer em uma
posição feminina? Afinal, se a morte é para todos, há ao
menos uma que responde a partir de uma referência não-todo
fálica. Essa é Justine, a moça da vez.
Nos momentos iniciais da película vemos a Terra e
Melancholia suspensos no espaço em uma “dança da morte”
(nome dado à rota de colisão entre os dois planetas). Ambos
são embalados, suavemente, pelo primeiro ato da ópera de
Richard Wagner - Tristão e Isolda – uma clássica história
de amor. Essa será a música que se repete ao longo de todo
o filme e assim parece querer nos advertir que, ali nas
imagens belíssimas em slowmotion das primeiras cenas, há
uma outra cena, que penso estar nas alusões feitas às
outras obras onde se encontra alguma pista sobre a
enunciação do filme. Não faltam citações: a ópera de
Wagner, a Justine de Marquês de Sade, quadros como “A morte
de Ofélia” de Sir John Millais e “O elogio à melancolia” de
Paul Delvaux. Há sempre nessas citações uma figura feminina
amante, abusada, morta, manca. Esse universo é tão rico que
se torna quase um labirinto seguir os rastros deixados
pelo diretor.
O filme começa quando Justine, logo após o casamento,
segue com o noivo para o local da festa. O fato da
limousine não passar no caminho será a primeira das
diversas ironias sobre os semblantes da cultura expostos ao
longo da estória. Nesse momento, fica claro o descompasso
da personagem com as demandas do seu papel de esposa feliz.
Justine chega atrasada, não cumpre os rituais da cerimônia,
não se contenta com a festa que finge gostar.
No discurso dos convidados, o pai toma a palavra e
fala superficialmente sobre como a filha está feliz. É um
pretexto para provocar a mãe de Justine que, por sua vez,
faz questão de dizer o quando odeia casamento. Finalmente,
o marido balbucia algumas palavras que não parecem se
dirigir a Justine.
Para além das peculiaridades de um pai bobalhão, de
uma mãe ‘dominadora’ e de um marido desconcertado, fica
claro como a dimensão do amor não se sustenta no discurso
do Outro. Nesse quadro, Justine cai em angústia. Procura a
mãe e depois o pai. Diz sentir medo, demanda deles algum
signo de amor mas ambos, aos seus modos, não respondem. Sua
irmã Claire e seu cunhado John(,) fazem questão de
trabalhar pela felicidade de Justine. Claire organiza toda
a cerimônia, John é quem tem o dinheiro para pagar. Todos
perguntam insistentemente: "are you happy?".
Nessa noite, quando é convocada a se posicionar frente
à demanda do Outro, ela escapa, sai da cena. São duas
atuações onde podemos ler algo do seu desejo. Na primeira,
depois de ser cobrada pelo chefe, Justine retira-se da
festa. Leva carinhosamente o seu sobrinho para dormir;
nessa cena ele pergunta quando irão brincar de caverna.
Na segunda atuação, deixa o marido no quarto em sua
noite de núpcias. Logo após, encontra mais uma vez o chefe
demandante, e pela primeira vez em um tom mais assertivo se
dirige a ele: “Nada é demais para você, Jack”. Dali em
diante Justine deixa de ser aquela que corresponde às
demandas do Outro. Trata-se de uma frase de quem sabe que o
falo, enquanto semblante de objeto da demanda, não é tudo,
nem faz todo.
Há um nada em jogo para quem não está no universal do
falo para todos. Não sem razão, são as mulheres que melhor
sabem localizar o nada no campo do amor. “O amor está ali
para demonstrar que o essencial na relação com o objeto é a
maneira, o nada. O que Lacan chama amor é a relação do
objeto com o nada”3 (MILLER, 2011, p. 241). No amor, o que
interessa é o gesto, não o objeto da oferta. A demanda de
amor não é de um objeto, mas de um signo do Outro e por
isso é infinita.
Segundo Fuentes (2009), a intimidade das mulheres com
o nada, como vemos na anorexia, na erotomania e na
melancolia levou Lacan a situar o gozo feminino como uma
modalidade do gozo do nada. Diferente do gozo fálico, o
gozo feminino não é circunscrito pelo corpo. Quando Lacan
(2005) precisa que às mulheres não lhes falta nada,
entende-se a razão de conceber um gozo não cernido pela
lógica fálica da presença-ausência. Se há um gozo drenado
pelo furo do nada, não há semblante que vista ou contenha
este excesso. Em casos de melancolia pode-se ver algo desse
gozo se estender à experiência limite de ser nada.
Apesar de estar intimamente ligada à Melancholia que
se aproxima, a saída de Justine não parece ser a
mortificante identificação com o “ser nada”. Penso que ela
pode lidar com o nada, mais nos termos que Miller aponta ao
falar sobre o amor.
* * *
Estamos no fim do primeiro ato e Justine já não vê a
estrela Antares no céu. Sua referência ao campo do Outro se
desvai. Não há mais outro a quem fazer cena, não há mais
a quem recorrer, não mais o que perder também.
Antes de colidir com a Terra, Melancholia atingiu
Justine. Enquanto os outros especulam ou negam a colisão,
Justine sabe e ponto. Já não teme a contingência e a morte.
Não há mais uma barreira fálica que dê consistência à
angústia de outrora. Não há mais véu que possa encobrir o
real da morte e da castração. Se antes os semblantes
vestiam o gozo dando-lhe um contorno, agora o gozo despido
retorna desmedido e implacável. O corpo estranho de
Melancholia é íntimo a Justine, ela sabe e se oferece.
Nesse ponto, o filme aponta para a especificidade com
a qual uma mulher pode responder à castração. Trata-se da
bela cena em que, sob a luz do sol da meia noite, Justine
vai até um rio e se estende nua para Melancholia. A imagem
desta mulher lindamente exposta à iminência da morte é
talvez uma das melhores formas de fazer ver como a
castração é a condição para o erótico. O saber relativo à
morte tem em Justine um efeito do fazer advir o sexual.
Nessa cena Eros e Tânatos parecem convergir no corpo nu de
Justine, iluminado pela luz fria de Melancholia. Não há de
que se ter vergonha.
Em "Uma conversação sobre a coragem", Miller (2010,
p.68) comenta sobre a convergência do sexual e do saber no
ato de coragem – “A coragme sexual é o mesmo que a coragem
epistêmica, é afrontar o outro sexo na medida que o
feminino é o sexo do Outro também para as mulheres”4. A
coragem advém quando se atravessa o horror frente ao real
da castração - o horror da feminilidade. A coragem dita
feminina diz respeito ao "não ter nada a perder", no
sentido de não se apoiar exclusivamente no plano fálico das
perdas e ganhos. A coragem é por excelência não-todo
fálica, porque no ato de coragem se prescinde do
reconhecimento do Outro e por extensão do gozo fálico,
narcísico, por excelência. Nesse sentido, pode-se dizer que
todo ato verdadeiramente corajoso é sem limite, sem
justificativa, sem Outro.
Se Justine não se assusta com a iminência da morte,
sua irmã Claire agoniza. Fica patente a angústia da irmã
com a possibilidade da vinda do corpo estranho. Seu medo
busca depositar no marido uma âncora. John, por sua vez,
acredita no saber da ciência, se fia nos instrumentos de
medição e observação para ratificar que Melancholia não tem
substância, que passará pela Terra sem causar danos.
John parece querer acreditar na Melancholia como um
café descafeinado. Um corpo sem substância. Um Real, sem
corpo, sem pulsão. É o engano da ciência e do próprio
discurso capitalista, ao buscar uma foraclusão do sujeito
dividido pela pulsão.
O estranho pode ser íntimo, mas não semelhante. O
destino de John condiz com sua posição subjetiva; seu
rechaço à morte é tamanho que, na iminência de sua chegada,
prefere se matar de modo não declarado, roubando os
remédios da esposa. John não assume a castração para sua
família, envergonha-se. É um covarde. Trata-se da típica
saída masculina diante do real do sexo e do saber sobre a
morte – ele não abre mão de sua fantasia, que não quer
saber nada da falência de todos os semblantes que
sustentavam sua existência. “A covardia fundamental dos
homens é que se embaraçam com o que têm que proteger[...]
são tão covardes que escondem a covardia mesma, quer dizer
que vão à luta em outro lugar que não o da relação dos
sexos” 5(MILLER, 2010, p.67-68).
À medida que Melancholia se aproxima da Terra, Claire
busca aplacar a angústia ao tentar criar um cenário para o
acontecimento. Trata-se, porém, de um cenário préfabricado,
como se pudessem aproveitar o fim do mundo de
modo cool e sem maiores afetações - um vinho certamente
cairia bem.
Justine zomba dos planos de Claire, mas desta vez
ela não fica no lugar costumeiro de se desfazer dos
semblantes do Outro. Trata-se do seu ato final – a caverna
mágica.
Mas em nome de que Justine se conduz para este ato, se
ela parece tão inerte à presença iminente de Melancholia?
Penso que é na figura do sobrinho que reside uma chave para
a resposta. Por um lado, o sobrinho é o único que não
demanda felicidade, o seu pedido é uma brincadeira de
caverna, uma demanda de amor, por outro lado é para a
figura do sobrinho que algo do desejo de Justine parece
apontar quando, em sua atuação na festa do casamento, se
retira para o seu quarto.
Melancholia está prestes a colidir, é quando Justine
pode brincar de caverna com seu sobrinho. Pegar gravetos
(que não deixam de ser resíduos sem utilidade aparente) e
com isso fazer a caverna mágica é um ato. Ali Justine dá
nada e com isso, de certo modo, não abre mão do seu desejo.
A caverna mágica não vela a iminência da morte; não se
trata de um escapismo lúdico. Apesar de não haver
significante universal que tampone o furo do real, Justine
pode oferecer, em ato, uma saída singular. Se por um lado a
caverna mágica é um significante do Outro, por outro lado é
também um signo da falta de significante estrutural frente
à morte. Pode por isso ser vista como um signo do nada.
Diferentemente de uma solução histérica, Justine não
brinca de caverna diante da morte como um modo de não
querer saber nada disso; trata-se, pelo contrário, de uma
afirmação de quem sabe não haver universal para responder
ao impossível. Não se trata da saída fálica da covardia
neurótica, vista na figura de John, nem da saída fálica da
angústia de castração, vista na figura de Claire, nem da
saída mortificante da melancolia da própria Justine.
Em sua caverna mágica, ela fez da sua contingência de
ser falante uma invenção vivificante. Ao acolher o sobrinho
e a irmã na cabana tão frágil quanto os gravetos, Justine
teve a coragem de oferecer nada e com isso se virar com o
real do sexo e da morte a partir de uma referencia não-todo
fálica. Trata-se de uma resposta que não tem sentido ou uso
para todos, e sim para Um. Naquele ato, ela pôde prescindir
do falo como defesa frente ao Real. Mostra que diante do
impossível, uma resposta não-universal, não fálica é aquela
que leva consigo o Um despido do Outro. Afirmar com isso
que a coragem é feminina evidencia como um ato verdadeiro é
aquele despojado da lógica do reconhecimento implicada nos
usos dos semblantes e do próprio falo.
Referências Bibliográficas:
Fuentes, M. J. S. (2009) As mulheres e seus nomes: Lacan e
o feminino, Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduaçao em
Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade de São
Paulo.
Lacan, J. (2005 [1962-1963]). O seminário, livro 10: a
angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Miller, J. A. (2010) Una conversación sobre el coraje. In:
Conferencia Porteñas – Tomo III. Buenos Aires: Paidós.
Miller, J. A. (2011) DONC – La lógica da cura. Buenos
Aires: Paidós.
Filmografia:
Melancholia, Alemanha/Dinamarca/França/Suécia, 2011.
Diretor: Lars von Trier.
Roteiro: Lars von Trier.
Fotografia: Manuel Alberto Claro.
Elenco: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer
Sutherland, Charlotte Rampling, John Hurt, Alexander
Skarsgård, Brady Corbet, Stellan Skarsgård.
1 Trabalho apresentado no Simpósio de Miami: O que Lacan sabia sobre as
mulheres. Maio/2013.
2 Associado IPB-BA. Especialista em Teoria Psicanalítica de Orientação
Lacaniana (EBMSP/IPB-BA). Praticante em Salvador-BA. Email:
luizfelipemonteiro@gmail.com
3 Tradução nossa. No original: El amor está allí para demonstrar que lo
essencial en la relación con el objeto es la manera, la nada. Lo que
Lacan llama amor es la relación del objeto con la nada”.
4 Tradução nossa. No original: “el coraje sexual es lo mismo que el
coraje epistêmico, es afrontar el otro sexo en la medida que lo
feminino es el sexo Otro también para las mujeres”.
5 Tradução nossa. No original: “La cobardia fundamental de los hombres
es que están embarazados de algo que tienen que proteger[...] son tan
cobardes que escondem la cobardia misma, es decir que van a lucha en
otro lugar que en la relación de los sexos”.
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_12/A_coragem_feminina.pdf