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1. Introdução
A psicodinâmica da família contemporânea tem sido uma questão que requer uma compreensão e uma reflexão mais profunda, pois nela pode-se observar a evidência de uma transformação gerada dentro da família. Dentre essas transformações podemos citar o afrouxamento do limite que tem levado de alguma forma a falha da internalização da lei. Como consequência disso pode-se propor em alguns casos como consequência, a impossibilidade da constituição do indivíduo como sujeito sociável, que vem indicando um mal estar tanto para o sujeito, quanto para a sociedade em geral. Por esse motivo se faz necessário a produção e a publicação cada vez mais de trabalhos e pesquisas a respeito do tema, para que haja uma melhor percepção, compreensão e acompanhamento dessa possível metamorfose que abrange família, sujeito e sociedade através de uma arrumação dinâmica e interligada.
Pelo viés da psicanálise e especificamente pela visão freudiana, esse trabalho abre um debate sobre família, sintoma e contemporaneidade, vislumbrando e sinalizando como as relações familiares podem ser um provável sintoma indicativo dessa mutação trazida pela contemporaneidade que se reflete na sociedade e vice versa.
Fazendo assim uma releitura da psicodinâmica familiar contemporânea através da perspectiva psicanalítica freudiana, pode-se observar que a falha da internalização da lei, do limite, tem sido uma problemática do cenário atual, onde se consegue sugerir e visualizar alguns sintomas refletidos pela família contemporânea como a infração e consequentemente, em algumas situações, a agressão, gerando repercussões na vida do sujeito e na ordem social.
É através de um ensaio bibliográfico que este trabalho visa realizar um recorte da família contemporânea e discutir alguns conceitos, tais como o de sintoma, diferenciando os termos sintoma psicanalítico e sintoma médico. Desta forma, far-se-á uma articulação do sintoma infração como substituto do recalcamento da falha da internalização da lei. A falha da internalização da lei será discutida como um possível fruto da relação edipiana, sugerindo assim a infração como um sintoma na tentativa de recuperação da lei, podendo-se chegar a realização da agressão física ou até mesmo o homicídio, pelo intermédio do que Freud chamou de acting out, dependo do contexto de algumas situações. Por fim far-se-á uma discursão, inferindo o impacto que a ausência da lei (autoridade enquanto função paterna) na contemporaneidade vem causando tanto na dinâmica familiar, quanto no âmbito social.
Esse ensaio teórico foi realizado a partir de uma pesquisa literária, feita através de vários livros que constam em acervos espalhados pelas bibliotecas localizadas na cidade do Recife.
Também foi realizada uma busca de artigos científicos, viabilizada por meio eletrônico, através das bases de dados Scielo e Google acadêmico, onde foram utilizadas algumas palavras-chave, como: “sintoma psicanalítico”, “sintoma médico”, “família contemporânea”, “história da família”, ”contemporaneidade”, “lei na visão psicanalítica”, e “limite na visão psicanalítica”.
Para começar, abordaremos o dinamismo da entidade família no decorrer da história, focando nos dias de hoje. Em seguida, o trabalho traz uma visão do sintoma e alguns conceitos psicanalíticos importantes para o entendimento do problema aqui proposto. Para finalizar, a falha da internalização da lei é ressaltada dentro do Complexo de Édipo, onde faz-se uma explanação sobre o mito Édipo Rei e a interpretação psicanalítica sobre o Édipo masculino.
2. A Instituição Família na Contemporaneidade
Segundo Prado (1981), desde os primórdios da história da humanidade não existe uma definição unívoca do que é família, apenas há esclarecimentos através de estudos antropológicos sobre as diversas evoluções sofridas por essa instituição ao longo dos tempos, que por sua vez é marcada pela noção do significado social aos indivíduos que institui laços dentro de uma mesma entidade, revelando assim como existiu e existe a família. Dentre os vários tipos de família existentes na atualidade, a mais conhecida e valorizada em nossos dias é aquela formada por pai, mãe e filhos, a nomeada família nuclear. Em tempo algum iremos encontrar através da narrativa humana uma sociedade que tenha existido fora de qualquer noção de família, ou seja, de alguma ligação institucional entre pessoas de mesmo sangue. Embora no interior das famílias haja transformações ao longo do tempo, ela sempre existirá seja qual for a sua representação ou configuração.
Roudinesco (2003) notabiliza três períodos importantes na evolução da família, onde o primeiro período é marcado pela família tradicional, que se caracterizou pela autoridade patriarcal, pela transmissão de um patrimônio e casamentos arranjados sem que os desejos dos futuros cônjuges fossem levados em consideração. Num segundo período a família foi timbrada como moderna, em que a mesma foi descrita por um modelo do amor romântico consolidado pela lógica imposta entre o final do século XVIII e meados do XX, em que era aprovada a troca mútua entre os cônjuges dos sentimentos e desejos carnais pela mediação do casamento, onde também se consolidou a divisão do trabalho entre os cônjuges. A educação dos filhos era responsabilidade dos pais e dentro desse panorama a autoridade passou a ser atribuída também ao Estado e aos pais, e entre os pais e as mães. A partir de 1960 a família é designada contemporânea, que tem como particularidade dois indivíduos que se juntam através de uma durabilidade relativa em busca de relações íntimas ou realização sexual, de modo que a transmissão da autoridade vai se tornando mais difícil e questionada à medida que os divórcios, a fragmentação e as reorganizações conjugais aumentam, onde a família não é mais garantida pela presença indesatável do divino através da convenção do casamento, tornando-se cada vez mais um acordo livre e outorgado entre os indivíduos enquanto o amor resistir.
Centeno (2001) relata algumas novas configurações familiares assumidas pela família contemporânea, que têm sido influenciadas pelo contexto social atual que atua diretamente nos costumes, evolução e transformação da família. Dentre os novos padrões familiares apresentados na contemporaneidade pode-se destacar: (1) famílias monoparentais, que surge proveniente do divórcio ou separação, onde um dos pais toma para si o cuidado dos filhos e o outro não é eficaz na parentalidade, ou famílias onde um dos pais é viúvo ou solteiro. Alguns dos obstáculos encontrados por essa família é de um genitor assumir as funções que normalmente seriam assumidas por ambos os genitores; (2) famílias reconstituídas, que são oriundas de recasamento e que trazem filhos do primeiro casamento. Umas das possíveis dificuldades encontradas por essa família são os impasses concernente aos direitos e deveres de cada membro, pois a mesma é constituída por filhos do casal atual e filhos dos outros casamentos que podem levar o casal atual a um série conflitos severos; (3) famílias de uniões consensuais é originada na sua maioria por divorciados, separados ou viúvos, casais que preferem morar juntos sem formalizar suas uniões frente ao matrimônio legal, preferindo morar em casas separadas; (4) família constituída por casais sem filhos por opção, procedente de casais que dão preferência ao crescimento profissional, social e a independência financeira, sem optar por filhos; (5) família unipessoais (Meler, apud CENTANO, 2001) é uma designação para aquelas pessoas que escolhem um lugar físico individual. São enumeras as razões dentre elas a oportunidade de trabalho fora do domicílio, independência individual, onde não fazem trocas emocionais compartilhadas; (6) família por associação, que são formadas por amigos sem vínculo de parentesco, onde as pessoas optam por formar uma rede fundamentada na amizade; (7) e por fim a mais polêmica a família formada por casal homoafetivo, formada por uma união estável entre pessoas do mesmo sexo, casal de gays ou lésbicas, com questões complexas de tornar assimilável mediante as coações, mitos e realidades que atingem estes casais.
3. O Sintoma na Perspectiva Psicanalítica e Médica
De acordo com a visão psicanalítica, o sintoma é uma substituição a uma satisfação pulsional, ou seja, indicativo do desejo que foi afastado pelo recalcamento, onde o mesmo indica o retorno do recalcado através de um substituto deformado do desejo não realizado. “Um sintoma é um sinal substituto de uma satisfação instintual que permaneceu em estado jacente” (FREUD, 1925, p.112).
Freud (1925) frisava que diante do conflito entre as exigências do consciente, e das representações recalcadas no inconsciente, surge uma saída, através do ego, a formação de compromisso, ou seja, o sintoma com a função de descaracterizar o que foi recalcado, para que possa ser aceito sem risco na consciência. Poderemos assim afirmar que o ego é o mediador entre o inconsciente e o consciente, fazendo com que haja uma satisfação dos conteúdos recalcados de forma indireta.
Ele não deve ser transformado em ação, pois, como sabemos na repressão o ego está atuando sob a influência da realidade externa e, impede o processo substitutivo exercer qualquer efeito sobre aquela realidade. Do mesmo modo que o ego controla o caminho para a ação, controla o acesso á consciência (FREUD, 1926, vol. xx, p. 116-117).
A partir de todo esse processo dinâmico, não podemos deixar de falar sobre um dos pilares da psicanálise, o recalque, que é a base para a formação do inconsciente.
Para Freud (1915), a essência do recalque consiste simplesmente em afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a á distância. Para que isso aconteça se faz necessário que ocorra uma cisão entre o representante ideativo (vorstellugrepräsentanz) e o afeto (affekt), em que o primeiro é caracterizado por ideias desagradáveis do campo da consciência, que é recalcado, e o segundo como qualidade e a quantidade de energia pulsional, o que não é recalcado, onde o representante ideativo e o afeto são independentes, ou seja, tanto o afeto quanto o representante ideativo têm destinos diferenciados (GARCIA-ROZA, 2008). Ou seja, Freud (1894), na carta 18 que escreveu a Fliess, esclarece que o afeto pode ter três mecanismos de transformação que são eles: transformação do afeto (histeria de conversão), deslocamento do afeto (obsessões) e troca do afeto (neurose de angústia e melancolia).
Freud (1915) nos mostra duas fases do recalque, onde a primeira fase consiste no recalque originário que é fundamental e responsável pela divisão do psiquismo, que se caracteriza pelas representações ideativas ou idéias desagradáveis individuais, que são regidas pelos mecanismos específicos do processo primário, a condensação e deslocamento, que vai atender ao princípio do prazer.
O recalcamento secundário se destaca por sucessões e pensamentos oriundos do pré-consciente/consciente, que é caracterizado pelo processo secundário, que por sua vez entram em contato com as representações recalcadas, que são frutos do recalque originário para satisfazer o princípio de realidade. (FREUD,1915).
No texto o retorno do recalcado, Freud (1939) nos mostra a terceira fase do recalcamento, afirmando que o retorno do recalcado é caracterizado por: “suas características distintivas, contudo é a deformação, de grandes consequências, a que o material que retorna foi submetido, quando comparado com o original.”(FREUD, 1930, p. 150-151). Significa dizer que, o retorno do recalcado é uma saída útil funcional regido pelas leis do inconsciente que se qualifica pelos processos primários de condensação e deslocamento através dos sonhos, fantasias, atos falhos e dos sintomas, que visam a satisfação substitutiva do desejo, satisfazendo tanto o princípio de prazer, quanto o princípio de realidade pela via de satisfação pulsional.
Dentro de uma perspectiva médica, pode-se dizer que o sintoma é da ordem subjetiva descrito pelo paciente que vem acompanhando de manifestações objetivas, ou seja, os sinais que são detectados pelo médico, através de uma anamnese e do método clínico aplicado no organismo, onde o mesmo vai dar uma significação através de um diagnóstico, como sendo ou não uma doença. (PIMENTA; FERREIRA, 2003).
Ainda na linha de pensamento de Pimenta e Ferreira (2003), tanto a psicanálise quanto a medicina partem da conjuntura de que o sintoma é proveniente de sentimentos, mas ao mesmo tempo se distancia no que se diz respeito a interpretação do sintoma. Na medicina é da competência médica detectar através de um diagnóstico algo no organismo e dar sua significação ao sintoma, decodificando o sinal apresentado como sendo doença ou não. Já em uma perspectiva psicanalítica, o sintoma é visualizado como algo contextualizado dentro da história de cada sujeito, onde indica fragmento do sujeito do inconsciente, que poderá estar passivo de redefinição com a participação do analista, podendo trazer resultado benéfico se o sujeito atribuir algum sentido ao sintoma.
Nasio (1993) indica o sintoma na visão psicanalítica como um mal estar que pode ser descrito de maneira bem singular seja por palavras ou através de maneira metafórica e inopinada, que é revelado de forma involuntária, ou seja, desprovido de qualquer saber consciente, visualizado como uma manifestação do inconsciente ao invés de ser legado a um estado insalubre.
4. Psicodinâmica familiar contemporânea refletindo o sintoma pela ausência da lei
Para que se possa discorrer sobre a lei na visão psicanalítica, se faz necessário citar alguns textos: Totem e Tabu (1913) e A Dissolução do Complexo de Édipo (1925), em que é enfatizada a lei como fator primordial e estruturante do indivíduo como sujeito sociável.
Freud (1913) no texto Totem e Tabu explica o mito da Horda Primeva que consiste em tribos primitivas aborígines da Austrália, em que nessas tribos o predomínio era o totemismo (divinização de esculturas, plantas, animais ou antepassado) e a exogamia, ou seja, proibições sexuais entre os membros do mesmo clã, caracterizada pela proibição do incesto que está ligado diretamente com o desejo de realiza-lo. É também abordada por Freud a questão do tabu, por se tratar de uma palavra polinésia, que por sua vez traz dois sentidos: de sagrado e de proibido, que provoca de uma certa maneira uma ambivalência dos sentimentos de hostilidade e de admiração ao animal totêmico, ou seja, animal esse representado pelo pai.
Por ser um pai tirânico e possuidor de todas as fêmeas do clã, o mesmo expulsava os filhos a medida que cresciam e nutriam desejos incestuosos dentro da horda. Consequentemente os filhos expulsos matariam e tragaria o pai opressor pondo fim a horda patriarcal. Sendo assim é apontado os sentimentos ambivalentes, a medida que os filhos tragavam o pai, ou seja, o odiavam por ele ser o proibidor dos desejos incestuosos, ao mesmo tempo se identificam com o mesmo adquirindo sua força, ou seja, o amavam e admiravam pelo domínio que o mesmo exercia dentro do clã, levantando assim a todos os filhos um sentimento de culpa. Tendo cometido o parricídio, os filhos perceberam que não podiam tomar o lugar do pai, por causa do sentimento de culpa e assim renunciam ao objeto de desejo, que no caso aqui eram as fêmeas do clã.
Nesse texto freudiano, há uma indicação notória da universalidade de um dos conceitos angulares da psicanalise que é o Complexo de Édipo, em que através do mito, Freud abre um debate e faz uma correlação entre a psicologia dos povos primitivos e a psicologia dos neuróticos, ou seja, o homem primitivo e o homem civilizado. Onde ambos são embasados pelos desejos incestuosos e que são marcados por uma proibição, ou seja, uma lei que é representada pelo pai e que são recalcados no inconsciente gerando angustia. Essa interdição constituída contra os desejos incestuosos que é relatada por esse mito, chama a atenção para uma organização social, dando origem à civilização, onde o tabu do incesto surge como a primeira lei que firma uma sociedade, ou seja, viabiliza a passagem do homem da natureza para a cultura, onde o incesto é propagado como sendo de natureza antissocial, evitando assim a destruição do pai real entre os homens civilizados e instituindo novos valores a partir desse interdito.
Freud (1897), na carta 71 dirigida a Fliees, menciona a partir de sua autoanálise pela primeira vez a tragédia grega de Sófocles, Rei Édipo, onde antes do nascimento de Édipo, seu pai Laio casado com Jocasta, resolve consultar o oráculo e recebe a profecia de que iria ter um filho que o mataria e se casaria com a mãe. Quando Édipo nasceu não recebeu nenhum nome e foi condenado a morte por seus pais Laio e Jocasta, sendo assim, Jocasta entregou o filho a um pastor e ordenou que o mesmo matasse o menino. Édipo é levado para o monte Citrão pelo pastor, onde ao invés de ser morto foi lhe furado os pés e amarrado com uma corda e pendurado em uma árvore. Logo em seguida, um outro pastor de Corinto que ao passar por aquele lugar comtemplou a criança dependurada a uma árvore e a salvou, cortando a corda que o amarrava e levando-o para a cidade de Corinto. Chegando em Corinto, Édipo foi amparado por Mérope e Políbio que o criaram como filho legítimo.
Já em sua fase adulta, Édipo é sabedor que não era filho legítimo dos pais que lhe amparou, extremamente desolado procura o oráculo e recebe a profecia que seria assassino de seu pai e casaria com a mãe. Tentando desviar-se de seu destino, Édipo deixa a cidade de Corinto e segue sem destino. Em um determinado ponto de sua jornada, passando por uma encruzilhada, ele se depara com um comboio que fazia a guarnição de um ancião, com quem tem um sério atrito, onde mata o mesmo e alguns do seu comboio. Édipo, nesse momento, acabara de cometer o parricídio, ou seja, mata o próprio pai.
Chegando as proximidades da cidade de Tebas, Édipo é sabedor que na entrada dessa cidade existia uma esfinge, que desafiava com enigmas a quem por ela passasse e devorava aquele que não desvendasse o enigma. Édipo imediatamente aceitou o desafio e se submeteu a decodificar o seguinte enigma feito pela esfinge: “ qual o animal que, pela manhã, anda com quatro pés, ao meio dia com dois e, à tarde, com três pés?” Édipo responde e explica: “ é o homem, que na infância gatinha, na idade adulta anda erguido e, na velhice, se apoia num bastão.” Nesse momento a esfinge de maneira repentina e impulsiva, vira-se para um abismo e se joga resultando em sua morte. Já Édipo, por ter decifrado o enigma e matado a esfinge, recebe como prêmio a mão da rainha de Tebas e viúva de Laio, Jocasta, o qual Édipo matara na encruzilhada. Sendo assim passou a reinar sobre Tebas, cumprindo-se a profecia do oráculo.
Dessa forma, Freud (1925) vem indicar a construção do sujeito desejante, onde o mito ajuda a tornar mais compreensível a dinâmica das relações em que a criança firma mediante as figuras parentais. Desse mito, pode-se dizer que é a partir da fase fálica que o menino apresenta uma grande valorização ao seu órgão genital, que resulta em uma ascensão libidinal, onde o menino deseja a mãe sexualmente e sente ódio do pai representante da lei tomando-o como rival, que vem interditar a satisfação do desejo incestuoso, onde esses sentimentos são demonstrados através de representações dos afetos, amor e ódio, que por sua vez ajudam a fundamentar a construção da subjetividade da criança. Vale a pena salientar que todo esse conflito ocorre de maneira inconsciente.
É na fase fálica que o menino através da representação da castração consegue ultrapassar o complexo de Édipo, que é caracterizada pelo medo que a ameaça da castração provoca, à medida que o menino visualiza a diferença anatômica dos sexos, ou seja, o menino constata de maneira concreta a ausência do pênis tanto na menina quanto na sua mãe. Sendo assim ele fantasia temendo que o mesmo possa lhe acontecer, pelos desejos incestuosos pela mãe e parricidas pelo pai como um castigo. Daí ele automaticamente cria um sentimento de culpa, originando o superego constituindo por uma instância moral. Com o medo de perder o pênis há uma interiorização da renúncia do desejo edipiano, ou seja, a proibição do desejo edipiano é constituída e percebida como a lei, que simboliza o limite, e é representada pelo pai enquanto função.
Quando Freud correlaciona o complexo de Édipo e a castração, percebe-se que há uma identificação do menino com os valores paternos que detém a lei que regula a dinâmica dos desejos edipianos que poderá ser interiorizada. Essa regulação dos desejos é ampliada dentro da construção do sujeito desejante, ou seja, é a lei, o limite que tem a função de barrar de alguma forma o desejo desmedido do menino, destronando-o de sua onipotência e inserindo o indivíduo no âmbito social fazendo-o deslizar da condição de ser para a de ter tornado-o assim um sujeito de desejo e sociável.
Com todo esse processo essencial na vida do menino é possível levantar a premissa de que a lei na visão psicanalítica tem a finalidade de estruturar o desejo, interligando-o com as regras de maneira satisfatória, alinhando assim o indivíduo como sujeito desejante na tentativa de harmonizar o convívio e a ordem social.
Quando este trabalho se refere a falha da internalização ou ao afrouxamento da lei no sentido psicanalítico, se faz necessário retomarmos os textos Totem e Tabu (1913), onde Freud faz com clareza a distinção entre o homem neurótico e o homem primitivo, ou seja, o homem civilizado e o homem selvagem. Sendo assim embasado no pensamento freudiano pode-se sugerir que o neurótico em algumas situações retorna ao seu estado primitivo substituindo e transformando o pensamento pelo ato propriamente dito. No caso do presente trabalho, sugere-se que o recalcamento da falha da internalização da lei, por sua vez pode retornar como o sintoma infração, na tentativa de recuperação dessa lei e ao mesmo tempo sinalizar dizendo que algo não está bem, fazendo, em alguns casos, a substituição pelo ato da agressão física propriamente dita, podendo chegar até a cometer o homicídio, gerando de certa forma uma desordem social que vem dificultar a inserção do sujeito desejante dentro do grupo social.
Mas os neuróticos são, acima de tudo, inibidos em suas ações: neles, o pensamento constitui um substituto completo do ato. Os homens primitivos, por outro lado, são desinibidos: o pensamento transforma-se diretamente em ação. Neles, é antes o ato que constitui um substituto do pensamento, sendo por isso que, sem pretender qualquer finalidade de julgamento, penso que no caso que se apresenta pode-se presumir com segurança que “no princípio foi o Ato” (FREUD, 1913 vol. XIII, p. 190-191).
Freud (1914) vem nos reforçar que o indivíduo em muitas vezes, por não conseguir expressar através de palavras a ideia que foi recalcada expressa pela via da atuação, reproduz como ação o que ele chamou de acting out, agindo sem saber por quê, viabilizando através da transferência o retorno do recalcado pelo caminho da ação, ou seja, não consegue simbolizar a representação que foi recalcada. É essa experiência clínica que Freud relata nos seus escritos técnicos que pode-se ampliar para as vivências do sujeito de desejo fora da clínica.
Se nos limitarmos a este segundo tipo, a fim de salientar a diferença, podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem saber que o está repetindo (FREUD, 1914 vol. XII, p.196).
Partindo dessa visão freudiana, esse trabalho transporta essa experiência clínica para as relações do sujeito em sociedade. Onde o sujeito de desejo, levado pelas descargas pulsionais, não consegue em algumas situações relatar através das palavras algo que foi recalcado, como por exemplo, a falha da internalização da lei, na tentativa de recuperar assim essa lei através da ação propriamente dita, pela via da agressão física ou até mesmo o homicídio, com o intuito de regular o sofrimento sentido pela ausência dessa lei que é fundamental na vida do sujeito desejante em sociedade.
Mediante o apontamento teórico que foi descrito, há uma provocação que se leva a refletir acerca do que provavelmente está sendo recalcado através dessa psicodinâmica familiar contemporânea. Diante do cenário que se apresenta, percebe-se que os novos padrões familiares, sugeridos pela contemporaneidade, provocam falhas na institucionalização da lei e do limite, fazendo com que os pais ou cuidadores permitam demais, e assim facilitem a onipotência do desejo exacerbado da criança descaracterizando o referencial de lei dentro do seio da família, que por sua vez é ampliada para as relações sociais. Desta forma a lei passa a ser minimamente reconhecida e em alguns casos não reconhecida, trazendo impactos nas relações familiares e sociais.
O sintoma indicativo e sugerido dessa psicodinâmica é a infração, que se apresenta como um substituto deformado do que foi recalcado, no caso aqui em debate seria a falha da internalização da lei, do limite. Pode-se perceber que o sujeito na maioria das vezes infringe na tentativa de recuperar a lei, o limite, ou seja, uma possibilidade de satisfazer o que foi recalcado. Nessa dinâmica em algumas situações visualiza-se também a recuperação da lei através do acting out, onde o sujeito pode se expressar através da agressão física propriamente dita, podendo chegar até a cometer o homicídio dependo da situação e da estrutura psíquica de cada sujeito.
Esse desejo pela recuperação da lei pode gerar um conflito no âmbito da condição de sujeito faltante e de sujeito desejante, em que, o que ganha notoriedade nesse processo dinâmico é a existência de uma falha, que é demonstrada pela exiguidade da lei, do limite, que estão bem presentes e sugeridos pelos moldes da contemporaneidade.
Diante de todo esse afrouxamento da lei dentro do seio da família, nota-se que o Estado foi constituído de alguma forma como a lei, através de uma figura de autoridade na tentativa de regular a ordem social, que vem sendo atingida pelas consequências das relações familiares, que por sua vez é influenciada e atingida pelos novos padrões familiares estabelecidos pela contemporaneidade.
Por outro lado percebe-se que o Estado, enquanto representante da lei, não tem dado conta de exercer a lei, por estar corrompido e enfraquecido como referencial da lei, sendo assim, o mesmo devolve a responsabilidade da representação da lei e do limite às famílias, onde o sujeito desejante configura-se como um barco a deriva que clama e recorre a outras instâncias sociais como religiões e grupos sociais que são constituídas como lei, na tentativa de que seus desejos sejam regulados.
5. Considerações finais
Chegando ao final desse ensaio bibliográfico e diante do que foi exposto no mesmo, podemos perceber que foi aberto um debate através da perspectiva psicanalítica freudiana sobre a psicodinâmica das relações familiares como um possível sintoma da contemporaneidade. Este artigo aborda a falha da internalização da lei, levando a refletir sobre uma série de transformações impostas pela contemporaneidade, no que se diz padrão familiar, que tem atingido a psicodinâmica das famílias e automaticamente tem afrouxado a lei dentro do seio da mesma.
Sendo assim, para que o debate que foi proposto por esse trabalho atingisse o objetivo esperado, foram explanados alguns conceitos dentro da visão freudiana tais como: sintoma o qual foi articulado como o sintoma infração, como substituto do recalcamento da falha da internalização da lei, que por sua vez foi interligado e sugerido como fruto da relação edípica correlacionada com a castração na tentativa de recuperação da mesma, onde essa recuperação da lei em algumas situações pode chegar ao extremo através da agressão física ou até do homicídio. Tudo isso viabilizado pelo acting out, gerando um mal estar na psicodinâmica da família, na vida do sujeito e na ordem social.
A partir da falha da internalização da lei, do limite dentro da psicodinâmica familiar contemporânea, o sujeito de desejo amplia sua busca pela recuperação da lei para outras instâncias que representa de alguma forma a lei, que no caso podemos citar: o Estado, as religiões e os grupos sociais, na tentativa de suprir a falha dainternalização da lei, que gera de alguma forma um mal estar em todos os aspectos da vida do sujeito desejante.
Diante do que foi exposto, acredita-se que a reflexão levantada é de grande importância para os que se interessam pelo tema família articulado ao contexto social de maneira geral.
Consciente da reflexão que foi proposta nesse trabalho, deixamos um importante debate, e ao mesmo abrimos um caminho para que outros trabalhos venham ampliar essa discursão. A família apresenta relações muito ricas, e ao focar em um tema específico, faz-se um recorte muito pequeno, tirando-se, de certa forma, o foco de sua complexidade.
Outros trabalhos devem ser realizados nessa área para enfocar outros tipos de relações e inferir possíveis explicações dentro da psicanálise. Um exemplo seria ressaltar também o complexo de Édipo na menina, uma vez que o presente artigo abordou o gênero masculino.
Estudos dessa natureza servem para que, cada vez mais, haja uma melhor compreensão e percepção das relações familiares vivenciadas no cenário atual.
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