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04/11/2014
AUTORIDADE E AMOR: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A TRANSMISSÃO DE SABER.
por Bruna Pinto Martins BritoI; Vera Lopes BessetII

Introdução

É a prática clínica com crianças e jovens e não a prática na escola que levou a questão do presente trabalho. Essa levou-nos a refletir acerca da relevância de uma "conversa" com os pais, e destacar também que, muitas vezes, é preciso uma "conversa" entre aquele que atende a criança e a escola. Trata-se, então, de uma prática sensível ao que extrapola ao consultório. Isso nos aproxima do que Laurent (2007) defende ao propor a prática de um analista-cidadão:

Um analista cidadão no sentido que esse termo pode ter na moderna teoria democrática. Os analistas precisam entender que há comunhão de interesses entre o discurso analítico e a democracia, e precisam entendê-lo verdadeiramente! Há que se passar do analista reservado, crítico, a um analista que participa, a um analista sensível às formas de segregação, a um analista capaz de entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora. (Laurent, 2007, p. 143)

Fazendo uso de uma prática cidadã, como nos propõe Laurent, podemos debruçar sobre aquilo que se apresenta na clínica como efeitos de uma subjetividade própria à nossa época. É cada vez mais freqüente, depararmo-nos com casos de crianças e jovens que apresentam dificuldades de aprendizagem de diversos tipos. Além dos problemas relativos à aprendizagem, esses alunos são, em sua grande maioria, considerados pela escola como "sem limites". Diante desses sujeitos "sem limites", é possível supor que há obstáculos à transmissão de saber nos dias atuais.

Por outro lado, devemos considerar o que se evidencia na fala de pais que chegam ao consultório. Em nossa prática, surge freqüentemente a queixas de pais desautorizados diante de seus filhos. Em busca de ajuda para seus filhos, relatam a dificuldade de exercerem a autoridade que lhes cabe. De um modo geral, buscam uma ajuda, típica de nossa época: em alguns casos, um pedido para que lhes forneça um manual que os ensine a agir nessas situações; em outros, um pedido de medicalização para seus filhos. Perguntas como: "Posso proibir que meu filho faça algo?", "A minha atitude não vai traumatizá-lo?" denunciam a demanda de obter uma certa "autorização" do Outro. Trata-se de uma referência a um termo de Lacan que remete, como nos lembra Gaspard (2007) "a um lugar de determinação, de introdução da Lei, em resumo, a uma ordem simbólica anterior e exterior ao sujeito"(p. 244).

Essas crianças e jovens, por sua vez, são considerados como problemáticos pelo fato de não obedecerem às regras. Mas, ao ouvir as queixas desses pais, desvela-se uma outra questão: a ausência de responsabilização dos pais na tarefa de fazer-se obedecer. Como consequência, a culpa por problemas como falta de limites, desobediência em casa ou na escola, são considerados como problemas exclusivos às crianças. Nossa proposta é refletir, a partir da ilustração de vinhetas clínicas, sobre a relação entre a falência da autoridade dos pais e essa categorização de crianças "problemáticas" e "sem limites". A partir dessa investigação, propomo-nos a fornecer as contribuições da Psicanálise para a Educação, trazendo subsídios para a discussão acerca da transmissão de saber.

A seguir, trazemos dois extratos de primeiras entrevistas com mães de crianças que, segundo elas, resistem a obedecer. No primeiro caso, uma menina com problemas de aprendizagem; no segundo, um menino "sem limites".

 

Vinhetas clínicas: dificuldades com a autoridade

I. tem 7 anos quando chega para tratamento na DPA (Divisão de Psicologia Aplicada/UFRJ), trazida por sua mãe, a Sra. J, e encaminhada pela escola onde estuda. A Sra. J nos relata que sua filha estava com dificuldades na alfabetização desde o ano anterior, mas só naquele momento havia conseguido o pedido de encaminhamento para um tratamento psicoterápico. Esse encaminhamento da escola foi demandado pela mãe de I. desde que ela percebeu o problema da filha. Mas, toda vez que perguntava sobre a importância de I. ter algum tipo de acompanhamento para resolver seu problema, a escola dizia que tinha que esperar mais um pouco. Muito preocupada com o problema de sua filha, J. diz: "Mas, vou esperar até quando?" Com isso, consegue que sua demanda seja atendida.

Para a mãe, o problema da menina é específico e diz respeito ao português. I. não se interessa por ler nem escrever. J. garante que ela não quer aprender, para essa mãe, é disso que se trata. Assim, entende que o "não querer" de I. reforça o fato de que ela podia aprender se quisesse, pois não tinha problemas "mentais", "cognitivos". Além disso, a mãe reclama muito do comportamento da filha. J. diz que em casa faz o que quer e que não consegue fazer com que a filha obedeça as suas ordens. E, na escola, parece também não obedecer, pois não quer aprender aquilo que é ensinado. É esse "não querer obedecer" que fica evidente na queixa dessa mãe. Vamos, nesse momento, seguir para a segunda vinheta clínica e aos encontros com a mãe de G.

A. chega com o filho G. de 8 anos para atendimento sob indicação médica, com a hipótese diagnóstica de hiperatividade. Sob essa hipótese, a médica prescreveu uma medicação, própria a esses casos. Mas ao chegar ao meu consultório, A. afirma que decidiu resolver o problema de seu filho de outra maneira e por isso procura minha ajuda. "Não quero que meu filho tome remédios", diz A. Durante as entrevistas, ela afirma que para que seu filho obedecer, ela deve pedir várias vezes a ele até que ele faça o que tem que ser feito. As avós que cuidam dele, enquanto a mãe está trabalhando, também reclamam para A. sobre o comportamento de seu filho. A partir dessas reclamações, ela diz: "ele faz o que quer e quando ele quer". E acrescenta que ele é muito acomodado: "ele não faz nada. Preciso fazer tudo pra ele, cuidar das coisas dele, inclusive as coisas da escola. Ela sempre pede a professora para lembrá-lo de checar suas coisas, para ele não esquecer de nada."

Diante desses dois extratos clínicos, podemos dizer que em ambos há a presença de queixas das mães em manter sua autoridade: são crianças difíceis. Vale lembrar que é notória a ausência do pai, apesar das tentativas de dar um espaço para os pais nos dois casos: no caso da menina, os pais eram casados, mas ele nunca ia às entrevistas na qual era convocado; no caso do menino, os pais eram separados e o pai sempre se recusou a comparecer a uma entrevista. Dessa forma, consideramos essas vinhetas como ilustrações de uma mãe e uma criança num estado de desamparo: por um lado, uma mãe que não sabe como fazer valer um lugar de autoridade (o menino faz tudo o que quer e quando quer, desrespeitando sua mãe a todo momento; a menina "não quer" aprender) e, por outro, a criança sem uma figura que seja uma âncora para ela (a mãe não consegue colocar num lugar de autoridade e o pai é ausente). Vale ressaltar que, assim como os pais, os professores enfrentam igualmente obstáculos para o exercício de uma autoridade, como no caso da professora de G, como trazemos a seguir como uma ilustração.

Após as entrevistas com a mãe de G., o menino chega para atendimento. Como as queixas na escola permanecem, faz-se necessário um encontro entre a responsável pelo tratamento de G. e sua professora. As reclamações que ela tem dele são em relação ao comportamento do menino. Diz que por vezes é difícil fazê-lo obedecer, mas não é mal-educado, porém demora para seguir as regras, tem sempre uma resposta/desculpa: "já acabei o dever", "já vou guardar o brinquedo". Além disso, ela segue as indicações da mãe de G.: ajudá-lo a checar as suas coisas. Pergunto se concede essa "ajuda" a todos os alunos, se é uma rotina da escola: ela diz que não. Pergunto, então, como ela pensa que G. poderia se tornar mais responsável, menos acomodado com suas responsabilidades, se na escola, por exemplo, ele vai tem quem faça sua parte por ele, como por exemplo, checar seu material da escola? A professora, então, conclui que essa sua "ajuda", não era muito bem-vinda para G. Algumas semanas depois, tenho um novo encontro com a mãe de G. que me diz que há algumas semanas, G. não tem esquecido nada referente às suas tarefas escolares.

Nesse contexto, de crianças com problemas de aprendizagem e/ou "sem limites", uma questão se delineia: como pensar a transmissão de saber numa época de falência da autoridade? Para iniciarmos essa discussão, é preciso, em primeiro lugar, se debruçar sobre essa falência da autoridade, própria ao contemporâneo.

 

Falência da autoridade

Para entendermos essa falência da autoridade, precisamos retomar o contexto em que ela aparece: a era dos avanços técnico-científicos. Essa particularidade de nossa época se faz acompanhar, do lado dos sujeitos, pela busca de um bem-estar permanente (Lipovetsky, 2004, p. 67). Desse modo, testemunhamos o ritmo frenético das indústrias oferecendo, em espaço de tempo cada vez mais curto, um novo produto para ser consumido, com a promessa de plena satisfação. Mas, o que interessa aí não é o acúmulo de bens, mas o uso e descarte rápido de objetos, de modo a abrir espaço para outros bens e usos (Bauman, 2004). Para a psicanálise, porém, o consumo excessivo dos objetos, é uma tentativa de tamponar a falta, estrutural, que nenhum objeto pode preencher (Brito, Bessa, Besset, 2007).

O declínio da autoridade, nesse contexto, pode ser entendido como uma descrença que acompanha a excessiva valorização do novo e a descartabilidade, como indica Gorostiza (2006). Essa valorização acaba por inserir as relações nessa lógica consumista. Como consequência, as relações são fluidas2, instáveis, em oposição à solidez de tempos atrás. Isso impossibilita o estabelecimento da confiança, posto que se faz necessário uma estabilidade nas relações para tal. Além da fluidez, assistimos ao predomínio de uma simetria nas relações, ou seja, todos possuem lugares iguais, sem distinção entre os papéis exercidos por cada um. Nas relações entre pais e filhos, isso é ilustrado no caso de pais que abrem mão de seus papéis familiares para simplesmente serem "amigos" dos filhos, numa tentativa de igualar-se a eles, serem "como" eles. Isso compromete o estabelecimento da autoridade que, segundo Laurent (2007) "se funda inicialmente sobre o que é autorizado, e não sobre o proibido. O fundamento da autoridade é poder dizer sim" (p. 43). Mas, trata-se de um sim com limites.

É preciso marcar que esse fenômeno atinge os pais, mas também o professor diretamente em seu fazer. Profissionais que atuam na escola pronunciam-se a respeito dessas transformações:

Se antigamente o professor era uma figura que merecia respeito por ocupar um lugar hierarquicamente diferente do aluno, atualmente é comum ouvirmos expressões tais como: "meu pai paga", "você não manda em mim", ou "você não pode me obrigar", respostas estas freqüentemente validadas pelos pais (Rubim, L.M., 2007, p. 27)

Se outrora as regras eram claras e indiscutíveis, atualmente, por mais que elas existam, alguns pais e educadores não conseguem colocá-las em prática. A proliferação de livros e manuais educativos que julgam dar conta da educação e do comportamento das crianças, consumidos em larga escala, revela uma das características da hipermodernidade: o psicologismo (Lipovetsky, 2004). Palavras e expressões como trauma, neurose, complexo de Édipo, frustração, inteligência emocional, entre outras, são comumente utilizadas pelos pais para justificar a ausência de lei e hierarquia na dinâmica familiar, quando, muitas vezes, quem parece "mandar" é o filho (Rubim, L.M. 2007). Porém, além da desvalorização da autoridade, a prática da avaliação também traz implicações aos encaminhamentos escolares que nos chegam, como veremos a seguir.

 

A escola no reino da avaliação

Nessa perspectiva de avaliação, o saber reconhecido é aquele que se afirma em nome da ciência e é constante a preocupação com o aprimoramento das técnicas. Esse saber pronto, que oferece soluções rápidas para todos os problemas, constrói-se, todavia, sem a participação daquele que se submete a ele. A prática dos "especialistas" fundamenta-se nesse saber para todos.

Nessa perspectiva universalizante, algo sempre escapa: o saber particular e próprio a cada um. Quando isso acontece, com freqüência recorre-se ao aperfeiçoamento das técnicas. Trata-se de uma tentativa de objetivação, que busca englobar o não-objetivável, ao mesmo tempo em que deixa de lado o que não se inclui no campo das medidas. Em consonância com o ideal de saber total (Miller, 2005) e com o de normalidade, a escola lança mão das técnicas de avaliação para identificar aqueles que se distanciam da norma.

Essa proposta parte do princípio de que é possível decompor a vida em funções (Le Blanc, 2004, p. 119). O objetivo principal, embutido na utilização desse procedimento seria a equivalência, expressa no seja como todo mundo relativo ao ideal de quantificação generalizada do ser humano (Ibid). Afinadas com o espírito de seu tempo, as práticas no terreno da educação balizam-se, assim, pela normatização de crianças e jovens, consideradas a partir de uma certa hierarquia, tendo em vista alguns parâmetros: normais/anormais; maduras/imaturas; aquelas que já estão prontas para algo/ as que não estão prontas, etc (Rubim, L.M. 2007). Na aplicação desses métodos, muitas vezes é possível identificar uma postura autoritária que prevalece em detrimento da autoridade. Sendo assim, a escola, fundando-se no resultado da avaliação indica, e por vezes impõe "encaminhamentos" a diferentes "especialistas" para tratar do problema que teria sido detectado.

Esse tipo de procedimento freqüentemente se acompanha de uma não-responsabilização dos educadores e dos dirigentes da instituição escolar em relação ao que se considera um problema do sujeito e de sua família. A conseqüência quase imediata dessas iniciativas, por vezes apressadas, é a culpabilização desses pais e a "psicologização", digamos, de questões que dizem respeito a um contexto e não somente a um indivíduo. Assim, pais de crianças e adolescentes que apresentam dificuldades de aprendizagem de diversos tipos são surpreendidos com a rapidez com que as escolas avaliam seus filhos que, como alunos, se desviam da norma. Ao mesmo tempo, desautorizados diante do saber 'todo' do especialista, desanimados diante da dificuldade da tarefa de educar, buscando "acertar", como se diz, muitas vezes renunciam, praticamente 'saem de cena', deixando essa tarefa a cargo da escola, que não tem vocação nem competência para tal.

Tal cenário, com a prevalência da certeza em um saber total, nos instiga a investigar as contribuições possíveis da psicanálise à educação e retomar as interrogações feitas por Freud à escola. Para a psicanálise, o limite diz respeito ao próprio saber, pois há um limite ao que se pode saber, ao que pode ser apreendido pelo saber (Brito, 2007).

No que concerne à tarefa de ensinar, trata-se de uma impossibilidade que se verifica na existência de um limite no que pode ser transmitido: é impossível saber tudo. Considerando que há (no sujeito) algo ineducável3, Freud aponta para a existência de limites na ação da educação, à qual compete formar, informar, transmitir conhecimentos. Quando Freud se refere ao educável, vale-se de uma noção específica de saber, própria à psicanálise. A partir dela, postula que há sempre um saber que não se sabe, uma falha no saber. A psicanálise, então, aposta num saber que só vale para aquele sujeito, pois é um saber não atrelado a uma técnica (Brito, 2007).

Aqueles a quem interessa transmitir um saber convém ocupar uma posição de autoridade. Após apresentarmos os desafios contemporâneos, voltamos nossa atenção para a concepção de autoridade para a psicanálise.

 

Psicanálise: autoridade pela via do amor

Primeiro, devemos nos perguntar: mas, de que autoridade se trataria aí? Evidentemente, nada que lembre um autoritarismo, que seria certamente contrário aos princípios éticos da psicanálise. Lembremos que, em nossa língua, autoridade remete aos seguintes significados: direito ou poder de se fazer obedecer, de dar ordens, de tomar decisões, agir, etc; aquele que tem tal direito ou poder; influência, prestígio; crédito; permissão, autorização (Buarque de Holanda, 1986, p. 204).

A psicanálise trabalha com uma noção de autoridade referida ao amor, como esclarece Freud: La credulidad del amor pasa a ser así una fuente importante, si no la fuente originaria, de la autoridad (Freud, 1905, p. 137). Esse amor é o amor de transferência, base e instrumento do trabalho de análise. Entretanto, ela não é exclusiva da experiência analítica, mas é universal e encontra-se presente em qualquer relação. Freud a atribui à neurose e não à psicanálise: no corresponde anotar en la cuenta del psicoanálisis aquellos caracteres de la trasferencia, sino atribuírselos a la neurosis (Freud, 1912, p. 99). Sendo assim, ela está presente na relação com o analista quanto com o médico ou com o professor, entre outros.

 

Autoridade pela transferência: confiança

No cerne do fenômeno da transferência está a confiança, que confere prestígio àquele que está na posição de autoridade, atribuída pelo amor (de transferência). Nesse sentido, pode apresentar-se sob duas modalidades: positiva e negativa. Quando é positiva, prevalece a confiança, mas quando a confiança falta, a transferência revela-se em sua face negativa, a desconfiança:

En la medida en que su trasferencia es de signo positivo reviste al médico de autoridad y presta creencia a sus comunicaciones y concepciones. Sin esa trasferencia, o si ella es negativa, ni siquiera prestaría oídos al médico o a sus argumentos. (Freud, 1917 [1916-17], p.405)

Nesse contexto, a indicação de Freud ao professor consiste em assumir uma postura que conjugue la medida correcta de amor y al mismo tiempo mantener una cuota eficaz de autoridad (Freud, 1933[1932], p.138). Isso implica ocupar o lugar de alguém que detém um saber limitado, pois em seu cerne há o furo do não-saber. Para tanto, seria necessária uma política educacional que considerasse que, a priori, o sujeito não quer saber. Assim, fazendo uso de sua posição de autoridade, seria possível ao educador convidar ao querer saber. Em seu texto sobre Leonardo da Vinci, Freud esclarece a importância da autoridade, indicando a existência de conseqüências em sua ausência:

la mayoría de las criaturas humanas (hoy como en los tiempos primordiales) sienten la imperiosa necesidad de apoyarse en una autoridad, a punto tal que se les desmorona el universo si esta es amenazada. (Freud, 1910, p.114)

 

Considerações finais

Procuramos aqui relatar uma prática preocupada com aquilo que pode se apresentar como externo ao consultório, mas que afeta diretamente a experiência analítica, impondo desafios à essa. Nesse sentido, seguimos então a proposta de analista-cidadão de Laurent, pois para o autor se trata de uma prática que não se limita "ao cultivo, recordação das particularidades e sim de transformá-la em algo útil, em um instrumento para todos" (Laurent, 2007, p.145). Retomando nossa problemática da falência da autoridade e suas implicações, evidencia-se essa preocupação do autor para refletirmos sobre os efeitos do contemporâneo que surgem em nossa clínica.

Acreditamos que numa época em que são bastante freqüentes as queixas de pais e professores em relação à dificuldade de fazer valer sua autoridade com crianças e adolescentes, as contribuições da psicanálise podem ser de grande valia. Não para fazer a apologia de um autoritarismo em nome de uma autoridade perdida, mas para nos fazer refletir sobre a dimensão de confiança e amor no que tange essa problemática. Nessa perspectiva, ocupar uma posição de autoridade é completamente distinto de buscar se impor a partir de um poder, ou seja, em uma posição autoritária. Sendo assim, a psicanálise coloca-se em posição oposta à tendência contemporânea de imposição de saber, presente na febre pela avaliação.

Para a psicanálise, há um saber que está do lado do sujeito. No contexto escolar, essa é uma indicação útil que pode estimular o professor a se colocar como alguém que detém um saber em cujo cerne há uma impossibilidade de saber tudo. Isso, a despeito da posição de autoridade que ocupa na relação com o aluno. Ao postular que há um saber do lado do sujeito, a psicanálise chama atenção para o saber que se encontra do lado daquele a quem se destina o ensino.

Tendo em vista as dificuldades de muitos profissionais diante da tarefa de transmissão de saber às crianças e adolescentes, destacamos duas contribuições da psicanálise à educação de fundamental importância. A primeira diz respeito ao próprio saber: há em seu cerne, um não-saber, indicando a impossibilidade de saber tudo. Diante dessa impossibilidade, há o desejo de não saber, próprio ao sujeito, ou seja, o não querer saber. E se o sujeito, a priori, não quer saber, como fazê-lo se interessar em saber?

É diante de tal desafio que enfatizamos a segunda contribuição da psicanálise: a relevância da relação professor-aluno nessa transmissão. A partir da psicanálise, podemos compreender que se trata de uma relação na qual o professor assume uma posição de autoridade que não deve ser confundida com autoritarismo. Trata-se de uma posição contrária ao autoritarismo prevalente no cenário atual, como forma de resgatar a autoridade que se encontra desvalorizada em nossos dias. É caminhando na contramão de tal autoritarismo que a proposta da psicanálise defende o estabelecimento de uma autoridade fundada no amor e na confiança. Ao assumir sua posição de autoridade pela via do amor e da confiança, é possível a quem cabe ensinar convidar cada aluno a se interessar em saber.

 

Referências

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Brito, B.P.M. Psicanálise: De que saber se trata? Besset, V.L. (orient.). Dissertação (Mestrado em Psicologia). Rio de Janeiro: Instituto de Psicologia, Centro de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.

___________. Bessa, G., Besset, V.L. Reflexões sobre a prática analítica na era do homem sem vínculos. Texto apresentado no CONPSI 5. Maceió, 2007.

Buarque de Holanda, A. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

Cohen, R.H.P. A lógica do fracasso escolar: psicánalise e educação. Rio de Janeriro: Contra Capa, 2006.

Freud. S. Obras completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu editores, 2ªed, 1986.

_______. 34ª Conferência. Esclarecimientos, aplicaciones, orientaciones. In: Nuevas Conferencias de introducción al psicoanálisis, v. 22, p. 392-407, 1933[1932].

_______. 27ª Conferencia. La transferência. In: Conferencias de introducción al psicoanálisis (Parte III), v. 16, p. 392-407, 1917[1916-17].

_______. Sobre la dinámica de la transferência. In: Trabajos sobre técnica psicoanalítica, v.12, p.93-105, 1912.

_______. Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci. V. 9, p. 53-127, 1910.

Gaspard, J.-L. Toxicomania: complexo familiar e figura do pai. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 13, n. 2, p. 243-252, dez. 2007

Gorostiza, L.. O Pai e a autoridade. In: Scilicet dos Nomes do Pai. Rio de Janeiro: AMP, p. 23-25, 2006.

Laurent, E. A sociedade do sintoma: a psicanálise Hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007.

Le Blanc, G. L'inévaluable - Actualité de Canguilhem. La Cause Freudienne. Paris, 57, p. 115-122, junho de 2004.

Lipovetsky, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.

Miller, J.A.(org). Efectos terapêuticos rápidos: conversaciones clínicas com Jacques-Alain Miller em Barcelona. Buenos Aires: Paidós, 2005.

Rubim, L. M. Psicanálise e Educação: Interfaces. Besset, V. L. (orient.). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia do IP/UFRJ, 2007.

 

1 Esse trabalho é fruto de nossa pesquisa de doutorado em andamento: "Transferência entre o saber e o gozo: o que pode a psicanálise?" (Bolsista Cnpq), sob orientação da Profª Vera Lopes Besset. Encontra-se também inserida no âmbito do grupo de pesquisa Clinp/Cnpq.
2 Trata-se de um termo utilizado por Bauman para definir os laços no mundo contemporâneo(Bauman, 2004)
3 Para um estudo mais aprofundado desse tema, remetemos o leitor a Cohen, Ruth H. P. Entre o impossível e o necessário da educação: o que a psicanálise pode dizer sobre a etiologia do fracasso escolar. Besset, V. L. (orient.). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia do IP/UFRJ, mimeo, 1999.

 

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