Artigos
1. Introdução
O uso abusivo de álcool e outras drogas constitui-se um grave problema de Saúde Pública, acarretando diversos prejuízos de ordem biológica, psicológica e social. Existe uma vasta bibliografia sobre uso de substâncias psicoativas, porém hoje se dispõe de poucos estudos relacionados à problemática da alcoolização e do uso nocivo e/ou prejudicial de outras drogas atrelada às pessoas em situação de rua. Importante salientar que, isoladamente, as pesquisas realizadas apontam que entre o fenômeno do uso de drogas e a população em situação de rua existe uma interdependência, já que pode ser encontrado ora como causa da desfiliação e aproximação das ruas, ora como consequência, ora como eventos que ocorrem simultaneamente (BRASIL, 2001; BOTTI et al, 2010; VALENCIO et al, 2008).
Até recentemente, o usuário de álcool e outras drogas era visto como um criminoso sem qualquer perspectiva de garantia de direitos. Deste modo, a abordagem médico-policial foi hegemônica. Todavia nos últimos anos, a perspectiva de trabalho, ao invés de atuar com a ideia de guerra e combate às drogas, fundamentada na criminalização e com o objetivo de eliminá-las, passa a considerar as especificidades que implicam no uso dessas substâncias, os sujeitos e suas singularidades (DUARTE, 2010; DELGADO, 2010).
Neste sentido, as políticas públicas referentes aos usuários de drogas vêm sendo repensadas, reformuladas e implementadas no sentido de propiciar respeito e garantias de direitos. A extinção da pena para o usuário, o fim do tratamento compulsório e o oferecimento de tratamento gratuito aos usuários e dependentes foram outras mudanças alcançadas a partir da Política Nacional sobre Álcool e outras Drogas (DUARTE, 2010).
Partindo de premissas da Política Nacional sobre Drogas e da Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua, que entendem as questões relacionadas a estes problemas sociais como complexas e multifacetadas, e que, muitas vezes, são vistas de modo reducionista, segundo a uma abordagem unidimensional, com enfoques assistencialista, “medicalizante” e higienista, considera-se importante repensar questões acerca das políticas públicas e das intervenções psicossociais ofertadas a estas pessoas, tendo em vista que a rede de atenção apresenta uma tendência à reprodução de valores tradicionais e emergentes na estruturação das concepções que orientam as práticas direcionadas aos usuários de drogas (BRASIL, 2008; QUEIRÓZ, 2007).
Diante das demandas advindas do uso abusivo do álcool e de outras drogas pelas pessoas em situação de rua, e devido à escassez de estudos sobre a temática, originou-se o desejo pessoal e profissional de contribuir para uma ciência mais crítica e engajada numa perspectiva de planejar intervenções de promoção de saúde, reabilitação/reinserção social, envolvendo as singularidades das trajetórias individuais como foco primordial de intervenção.
Destarte, o objetivo de investigação do presente estudo é uma discussão acerca de pessoas em situação de rua, mas, sobretudo, àquelas que fazem uso/abusivo de álcool e outras drogas, analisando aspectos das políticas e práticas de saúde pública e da assistência social, das estratégias de cuidados direcionadas esse segmento populacional, que incluem a Redução de Danos e as práticas baseadas na abstinência e internação.
2. Revisão da Literatura
2.1 Um olhar sobre as pessoas em situação de rua e o uso de drogas
A população em situação de rua pode ser definida como um grupo populacional heterogêneo, caracterizado a partir de alguns aspectos em comum, como: pobreza, vínculos familiares fragilizados ou interrompidos, vivência de um processo de desfiliação social pela ausência de trabalho assalariado (e das proteções derivadas ou dependentes dessa forma de trabalho) e ausência de moradia convencional, adotando a rua como o espaço primordial de moradia e sustento. É valido salientar ainda que especificidades como gênero, raça/cor, idade e deficiências físicas e mentais devem ser consideradas, uma vez que atravessam de modo peculiar as pessoas em situação de rua, interseccionando as vulnerabilidades e complexificando a compreensão deste fenômeno (BRASIL, 2008).
Diante destas inúmeras situações envolvidas com a vida nas ruas, alguns autores propuseram que existem modos diferenciados de habitar o espaço público, no afã de compreender as diferentes inserções e modos de relacionamento das pessoas que aos poucos se aproximam do universo das ruas. Citamos os estudos propostos por Vieira, Bezerra e Rosa (1992) (citado por Botti et al (2010) , que caracterizam a condição de permanência na rua como fator de cronificação, apresentando distinções entre,
“ficar na rua, circunstancialmente” (situação que advém da precariedade da vida da pessoa), “estar na rua, recentemente” (situação em que já se estabelecem relações com outras pessoas que vivem ou trabalham na rua) e “ser de rua, permanentemente” (situação que, devido ao longo tempo na rua, já há processo de debilitação física e mental, especialmente pelo uso do álcool e outras drogas, alimentação deficitária e exposição e vulnerabilidade à violência) (BOTTI et al, 2010 p. 549).
A Pesquisa Nacional da População em Situação de Rua, realizada em 2008, aponta que as principais causas pelas quais as pessoas passaram a viver e morar na rua refere-se aos problemas de alcoolismo e/ou uso de drogas ilícitas (35,5%); desemprego (29,8%) e desavenças com pai/ mãe/ irmãos (29,1%). Destes 35,5% que estavam na rua devido a problemas com drogas e/ou alcoolismo, 28,1% declararam que já estiveram em centros para dependentes químicos. Vale destacar que esta pesquisa investigou as motivações que levam as pessoas a viver nas ruas: o maior percentual foi referente aos problemas familiares ou separações amorosas, e o segundo maior percentual destaca as drogas como facilitadoras da ida destas para a rua.
Para Varanda (2009), as pessoas que fazem uso de drogas, bem como aquelas que estão em situação de rua, têm pouca aceitação por parte da sociedade, tendo sua integração social muitas vezes negada, sendo, portanto, considerados “descartáveis urbanos”, submetendo-se à invisibilidade e a exclusão nas mais diversas esferas sociais.
As pessoas em situação de rua são como estranhos que não participam do espetáculosocial. Estes fazem o papel da “não-pessoa”, o que implica uma relação de desrespeito e discrepância frente aos indivíduos atuantes (VALENCIO et al, 2008, p. 559).
Historicamente, este segmento populacional recebeu pouca atenção do Poder Público, ora o tema era tratado com compaixão, preocupação e até assistencialismo, ora com repressão, preconceito e indiferença. Nesta perspectiva, a relação de interdependência entre o uso abusivo de drogas e a população em situação de rua pauta-se no fenômeno da exclusão social, tendo em vista que ocorreu ruptura de relações familiares e afetivas, além da ruptura total ou parcial com o mercado de trabalho e a não participação da vida social (CASTEL, 1993; VARANDA & ADORNO, 2004).
Recentemente, devido às lutas sociais que ocorreram nos últimos anos, as políticas públicas vêm passando por relevantes transformações no que tange a esta camada da população, problematizando o modo como as instâncias intersetoriais percebem estes sujeitos, as diferentes relações e lugares que a droga ocupa em suas vidas e na sociedade. Tais abordagens estão sendo construídas no sentido de priorizar o protagonismo social, deslocando a noção da passividade do sujeito para a necessidade de sua ação, a perspectiva dos imperativos sociais do consumo, dos direitos humanos e da cidadania (VARANDA & ADORNO, 2004; VARANDA, 2009; VALENCIO et al, 2008; OLIVEIRA, 2009; BOTTI ET AL, 2010).
Nessa perspectiva, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) assumiu o compromisso de formular políticas públicas dirigidas para a população em situação de rua. Em 2005, a Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) realizou o I Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua, gerando discussões em conjunto com os movimentos sociais representativos desse segmento social, sobre os desafios, as estratégias e as recomendações para a formulação de políticas públicas nacionalmente articuladas para essa parcela da população. Em 2008, foi implantada no Brasil a Política Nacional para inclusão social da população em situação de rua, a fim de estabelecer diretrizes que possibilitem a (re)integração destas pessoas às suas redes familiares e comunitárias, bem como o acesso aos seus direitos de cidadania e oportunidades de desenvolvimento social (BRASIL, 2010.a).
A presente política estrutura-se na cooperação inter-governamental, conjugando esforços municipais, estaduais e federais, e atuando com a população em situação de rua, de modo interdisciplinar e intersetorial, incluindo as organizações governamentais, não-estatais e movimentos sociais. Deste modo, esta Política Nacional contempla propostas que abarcam questões essenciais concernentes à população que faz das ruas seu espaço principal de sobrevivência e de ordenação de suas identidades (BRASIL, 2010.a).
Em referência às ações de saúde, os principais objetivos são: Garantir a atenção integral à saúde das pessoas em situação de rua e adequação das ações e serviços existentes, assegurando a equidade e o acesso universal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS); Fortalecer as ações de promoção à saúde, enfatizando o Programa Saúde da Família sem Domicílio, assegurando acesso à prevenção e ao tratamento de doenças principalmente as com alta incidência junto a essa população, como doenças sexualmente transmissíveis/AIDS, problemas de saúde mental e transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas; Implantar o Programa de Acompanhante Terapêutico para as situações que necessitem de abordagem de cuidado, articulado com o PSF sem Domicílio, visando reconstruir com o indivíduo em situação de rua, o seu projeto de vida; Ampliar a Estratégia de Saúde da Família sem Domicílio (Programa “Agente na Rua”), para todo o País, tendo como requisito básico a prioridade de que eles sejam ex-moradores de rua, garantindo a este agente formação permanente; acompanhamento psicológico, monitoramento e supervisão técnica do trabalho em campo; Fortalecer as ações de atenção à saúde mental das pessoas em situação de rua, em especial aqueles com transtornos mentais decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas, facilitando a localização e o acesso aos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS I, II, III e AD) (BRASIL, 2010,a.);
Contudo, conforme Oliveira (2009) e Varanda e Adorno (2004), a problemática em questão é um desafio para as políticas públicas de um modo geral, visto que além das dificuldades reais, inerentes à situação de rua, os serviços sócioassistenciais e de saúde não estão preparados para o acolhimento dessa população, nem mesmo quando a procura é espontânea, ou quando são encaminhados por outros serviços da rede. Oliveira (2009) afirma, a partir de exemplos como exigências de que as pessoas tomem banho antes do atendimento, negativas em fazer procedimentos por receio de contaminação, dentre outros, que a negligência, o desrespeito aos direitos humanos, o preconceito, a discriminação e a segregação ainda fazem parte da realidade da estrutura do atendimento à população de rua.
Considerando o fato de estas categorias sociais estarem sob graves condições de vulnerabilidade e exclusão social, problematizamos aqui o uso de álcool realizado cotidianamente por esse segmento da população, o que acaba por gerar maior suscetibilidade a enfermidades física e psíquica, dificuldades no engajamento laboral e outros problemas inerentes. e, , Vale ressaltar que é preciso complexificar essa questão, considerando que o uso de álcool por outro lado, assume o caráter de anestesiar o sofrimento do dia-a-dia, fazendo parte dos hábitos e modos de relacionamento das pessoas e grupos que vivem em situação de rua. Isso implica em considerar que as intervenções mais adequadas voltadas a essa questão devem se dar a partir da compreensão de suas múltiplas facetas, contextualizando-as frente aos fatores culturais, sociais, políticos, econômicos e subjetivos, o que implica “cuidar” de modo diferenciado, tanto por parte dos serviços sócioassistenciais, quanto dos de saúde (BOTTI ET AL, 2010). É necessário desmistificar os preconceitos, tanto os de caráter repressivo quanto libertário, a fim de abandonar conceitos maniqueístas, instituindo assim a inclusão de subsídios que permitam a construção de uma nova consciência coletiva .
Partindo deste pressuposto, entende-se que as políticas públicas e a equipe técnica devem atuar como uma ponte para a população que está à margem do sistema de saúde, possibilitando sua inserção na rede, assegurando direito à convivência e a cuidados cotidianos com relação à sua individualidade/subjetividade. Esta atuação deve-se pautar nas múltiplas dimensões do sentir humano, guiando-se por princípios éticos de respeito à dignidade humana e à realidade de vida das pessoas.
2.2 Assumindo o Controle: uma perspectiva do programa de redução de danos
O uso de plantas, substratos vegetais e substâncias de origem animal com intuito de produzir diversos e diferentes estados alterados de consciência é uma realidade que existe em diversas culturas, desde a pré-história. E desde então, difundidos como parte da cultura, buscou-se diferentes conjuntos de normas, regras de conduta e rituais sociais que funcionassem como eficazes orientadores para uso de tais substâncias. Alguns autores sugerem que são os controles sociais informais, exercidos constantemente por cada pessoa em seu dia-a-dia, os verdadeiros responsáveis pela ordem social, visto que os controles exercidos de modo formal pelo Estado ou outros órgãos institucionais são de natureza pontual, incerta e inconstante (ALVES, 2009; MARTINS e MACRAE, 2010; DUARTE, 2010; DELGADO, 2010).
Como formas institucionalizadas de intervenção exercidas pelo poder público frente ao uso cada vez mais indiscriminado de substâncias psicoativas, destacamos dois modelos antagônicos, que dividem a opinião de cientistas e ativistas no que tange ao papel exercido pelo Estado no controle sobre a venda e o consumo de drogas: o proibicionismo e o modelo da redução de danos. O proibicionismo e o programa redução de danos têm sido estudados e debatidos como recursos importantes na reabilitação dos usuários de drogas. Apresentam antagonismos quanto aos seus pressupostos ideológicos, benefícios e danos, sendo considerados os principais modelos e posicionamentos políticos para lidar com as questões referentes ao consumo e as consequências nocivas do uso de álcool e outras drogas (PASSOS e SOUZA, 2011; ALVES, 2009).
Caracterizado como uma política de guerra às drogas, o proibicionismo funda-se através da redução da oferta e da demanda de drogas por meio de estratégias baseadas fundamentalmente em ações de repressão, moralização e criminalização do consumo das drogas, segundo perspectiva autoritária que almeja um mundo livre de drogas (ALVES, 2009; DUARTE, 2010; DELGADO, 2010;). Entende-se, portanto, que este modelo não leva em consideração a história da utilização das drogas na sociedade, tendo em vista que “A abstinência total é entendida como um estado ideal e pouco compatível ao contexto próprio das sociedades de consumo” (BRASIL, 2003,a).
As instituições de saúde, como, por exemplo, as comunidades terapêuticas, fundamentam a sua prática de trabalho no modelo proibicionista, fundamentando suas intervenções a partir da exigência de abstinência, e apresentando censuras e recriminações ante os episódios de recaída ou reincidência ao uso de drogas, tornando-se assim espaços pouco acolhedores àqueles estigmatizados como “fracos”, “vagabundos”, “sem-vergonha”, “imorais”. Assim, tal modelo acaba por potencializar o sentimento de fracassado e humilhado do indivíduo, contribuindo ainda mais para a manutenção do consumo, após a recaída (JESUS, 2006; ALVES, 2009; RIGOTTO e GOMES, 2002).
Devido ao fato da abstinência despontar como condição, meio e finalidade do tratamento, o proibicionismo tem sido caracterizado como um modelo de alta exigência, haja vista que nenhum padrão de consumo é tolerável. Além disso, as propostas cuja meta é a abstinência têm revelado pouca resolutividade, pois, muitas vezes, o usuário não quer abandonar completamente seu consumo, pelo menos, não naquele momento, mas sim diminuir e controlar seu uso (ALVES, 2009).
Apesar de o proibicionismo ser o modelo ainda hegemônico para lidar com a questão das drogas, ele vem perdendo força frente às novas abordagens do problema, que o circunscrevem de forma mais ampla, levando em conta a heterogeneidade dos modos de consumo, das razões, das crenças, dos valores, dos ritos, dos estilos de vida e das visões de mundo que o sustentam (PASSOS e SOUZA, 2011).
Segundo uma perspectiva menos repressora, apresenta-se o modelo de Redução de Danos, que surgiu na Holanda e no Reino Unido em meados da década de 1980. No Brasil, este modelo começou a ser adotado através da política DST/aids, representando uma abordagem preventiva da transmissão do HIV/aids entre as pessoas que fazem uso de drogas injetáveis e sua rede de interação social e de tratamento de uso/abuso de drogas, comprometida com a cidadania e o respeito aos direitos humanos para os usuários de drogas na sociedade. Neste caso, reduzia-se danos de contaminação através da distribuição de seringas descartáveis para o uso de drogas injetáveis e preservativos, em intervenções que não estigmatizavam e perseguiam o comportamento sexual considerado arriscado ou o consumo de substâncias psicoativas. A Redução de Danos está em franca sintonia com todas as experiências sanitárias que buscam a defesa da vida (BRASIL, 2001; LANCETTI, 2011).
É relevante notar, conforme Rigoni e Nardi (2006), que a redução de danos se insere no país em um momento onde ocorria uma reabertura política, momento de elaboração da Constituição Federal de 1988, e no cenário das lutas pela Reforma Sanitária e Psiquiátrica. Partindo disso, as autoras pontuam que a RD pode ser entendida como um dispositivo da Reforma Psiquiátrica, na medida em que traz novos desafios à clínica e implementa novas tecnologias de cuidado, levando os compromissos e diretrizes da Reforma para pessoas que usam substâncias psicoativas. Tendo o princípio da clínica ampliada como diretriz principal das estratégias de redução de danos, aproxima a Reforma Psiquiátrica do campo da drogadição, fazendo emergir deste processo novos sujeitos de direito: pessoas que fazem uso abusivo de drogas e que são marginalizadas pelo histórico de uma política repressiva.
Diante deste cenário, e em concordância com as recomendações da III Conferência Nacional de Saúde Mental, o Ministério da Saúde passou a implementar o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e outras Drogas, com o objetivo central de reduzir, para os usuários, suas famílias e comunidades, as consequências negativas relacionadas à saúde, aos aspectos sociais e econômicos decorrentes de substâncias que alteram o temperamento, ampliando o acesso ao tratamento, à compreensão integral e dinâmica do problema, à promoção dos direitos e à abordagem da redução de danos (BRASIL, 2004).
A estratégia da Redução de Danos, legitimada pelo Ministério, é uma estratégia de saúde dirigida através de intervenções e estratégias preventivas e/ou minimizadoras de danos à saúde, danos sociais e econômicos referentes ao uso de álcool e outras drogas, sem necessariamente interferir na oferta ou no consumo, sendo orientada por um princípio fundamental que é o respeito à liberdade de escolha, tendo em vista que muitos usuários, por vezes, não conseguem ou não querem deixar de usar drogas (BRASIL, 2003.b; LANCETTI, 2011).
A população acessada pela RD de modo geral encontra-se cansada das imposições institucionais e sociais que, muitas vezes, não têm a menor condição de serem cumpridas, como, por exemplo, a exigência de abstinência como condição para o tratamento (SILVA, 2009). De acordo com Silva (2009), estas imposições têm feito com que usuários que necessitam de atenção de saúde sejam desassistidos, uma vez que muitos serviços de saúde não consideram aceitáveis alternativas à abstinência, como diminuir o consumo de algumas drogas ou eventualmente trocar por outras consideradas menos problemáticas.
A subjetividade deve ser sempre lembrada nos debates de políticas públicas relacionadas aos problemas decorrentes do uso de drogas, considerando que existem pessoas envolvidas, sujeitos, singularidades. Faz-se necessário compreender a interpretação que o indivíduo faz de sua experiência, de seu estado e da motivação que o conduz a um consumo frequente da droga (DELGADO, 2010).
Na ausência da vontade e persistência para abandonar o uso espontaneamente, as intervenções externas exigem a compreensão dos mecanismos do uso de drogas em geral e tendem a compreender o que o usuário de substâncias psicoativas considera indispensável à satisfação de suas principais necessidades no plano social, cultural, afetivo e cognitivo, considerando que esta percepção é permeada pelo contexto maior. Deste modo, os dispositivos de saúde orientados para RD devem aceitar diversos contratos, levando em consideração a necessidade real do indivíduo, fugindo, dessa forma, da lógica da abstinência e da internação (NARDI e RIGONI, 2009; MARTINS e MACRAE, 2010).
O Ministério da Saúde, por reconhecer as dificuldades no que tange à adesão ao tratamento e o papel ativo do usuário nesse processo, adotou a o programa de redução de danos “como um método clínico-político de ação territorial inserido na perspectiva da clínica ampliada” (BRASIL, 2004).
A noção de saúde ampliada, a participação e o controle social, e princípios como equidade e universalidade são bandeiras que nascem conjuntamente com o movimento social em redução de danos que vem se desenvolvendo a partir da luta de sua inserção como proposta do Sistema Único de Saúde (SUS) (NARDI e RIGONI, 2006, p.18).
Partindo deste pressuposto, tal paradigma vem sendo incorporado às políticas públicas para o álcool e outras drogas, numa estratégia abrangente que envolve a saúde pública, a educação, os meios de comunicação, a assistência social, entre outras, numa ampla perspectiva da redução de danos e riscos sociais (BRASIL, 2004).
O programa de redução de danos vem ganhando espaço e sendo reconhecido como uma estratégia de intervenção terapêutica eficaz, em que é exercido não só o paradigma da tolerância, mas, sobretudo do atendimento integral. As estratégias de RD são produtoras de abertura para novos sentidos e potencializadoras de re-singularizações individuais e coletivas, funcionando como um disparador do resgate subjetivo, de uma vinculação possível (BRASIL, 2003, a). É portanto, um modelo catalizador de forças no embate e luta que estes sujeitos poderão vir a desejar travar no campo das relações de poder do campo social, resgatando o exercício de liberdade e a não manutenção de condições de assujeitamento, “aí o sujeito se liberta e se autonomiza no uso”(VARANDA, p.IX, 2009, com grifos meus).
2.3 Apresentando o CREAS e o CAPS
Com a aprovação da Política Nacional de Assistência Social, da Norma Operacional Básica- NOB, e implantação do Sistema Único de Assistência Social- SUAS, a Política de Assistência Social divide-se em Proteção Social Básica (voltada à prevenção de situação de riscos pessoal e social, fortalecendo as famílias e indivíduos) e Proteção Social Especial (voltada à proteção de Famílias e indivíduos em situação de risco social e pessoal), organizada por níveis de complexidade (BRASIL, 2004. b).
De acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Sócioassistenciais, a PSE de Média Complexidade inclui entre alguns serviços, o Serviço Especializado de Abordagem Social em Espaços Públicos, bem como o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). O município referência neste estudo dispõe somente de um destes dispositivos, o CREAS, que se configura como unidade pública e estatal, atendendo àquelas famílias que têm agravos de vulnerabilidade, indivíduos ou famílias que perderam o vínculo familiar e/ou estão em situação de violência, em situação de rua, em situação de abandono; pessoas que, de algum modo, além da condição de vulnerabilidade também perderam direitos (BRASIL, 2006).
As famílias em situação de vulnerabilidade e com agravos desta vulnerabilidade causados por integrantes usuários de drogas devem ser acompanhadas pelo CREAS de modo integrado ao serviço ofertado pela rede de saúde. É relevante notar que a garantia da proteção social se dá a partir das políticas de assistência social articuladas com as demais politicas, inclusive aquelas relacionadas aos usuários de drogas em situação de rua.
Em maio de 2010, foi sancionado o Decreto nº 7.179, que garante ações de prevenção do uso, tratamento e reinserção social de usuários, com a participação de familiares e a atenção especial para públicos vulneráveis (crianças, adolescentes e população em situação de rua). Importante ressalvar que antes deste decreto, a proposta do cuidado para este público já vinha sendo debatido. A exemplo disso, encontramos a Portaria Nº 336/GM 2002, que institui novas modalidades de CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), como o CAPS ad (álcool e drogas), definido pela complexidade e população do município, com atenção para pacientes com transtornos decorrentes do uso e consumo de substâncias psicoativas, funcionando segundo o território, numa perspectiva de RD conforme a diretriz do SUS (BRASIL, 2004a).
Estes dispositivos foram adotadas como equipamentos de saúde fundamentais para o tratamento dos usuários de drogas, caracterizados como serviços flexíveis e abertos, facilitando o estabelecimento de vínculos entre usuários e profissionais. Priorizam a intervenção no locus de convivência da clientela, tornando-se serviços articuladores de outros recursos da comunidade e promotores de ações intersetoriais, possibilitando ao usuário em tratamento melhor inserção/integração em seu próprio ambiente de convivência (BRASIL, 2004a).
Em decorrência do porte do município, a rede pública conta há cinco anos com um CAPS I ( rede básica com ações de saúde mental) e há dois anos com um CREAS. Embora o município não receba recursos federais para ações relativas ao consumo de álcool e outras drogas, o mesmo disponibiliza recursos próprios, e, através da articulação entre o CREAS, o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial – um equipamento da rede de atenção à Saúde do SUS) e outras unidades de apoio destas e demais secretarias, são realizadas ações voltadas para estas pessoas, inclusive àquelas que estão em situação de rua. A população soma um pouco mais 25.000 habitantes.
A equipe compõe-se de três técnicos com nível superior (psicólogo, advogado, assistente social), três com nível médio (educadores sociais e assistente administrativo) e atua a partir de dispositivos como: mapeamento do território, das demandas espontâneas e de encaminhamentos da rede sócio assistencial (CRAS), Polícia Militar, Conselho Tutelar, serviços de saúde e da própria comunidade. Em relação à acessibilidade das pessoas em situação de rua aos serviços do CREAS, de modo especial àquelas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas, estes profissionais realizam ações como: abordagem de rua, busca ativa objetivando construir vínculo e, por conseguinte, inserção na rede de proteção social.
Os CAPS configuram-se como serviços comunitários ambulatoriais e regionalizados nos quais os pacientes deverão receber consultas psiquiátricas e atendimentos terapêuticos individuais ou grupais, podendo participar de ateliês abertos, de atividades lúdicas e recreativas promovidas pelos profissionais do serviço, de maneira mais ou menos intensiva e articuladas em torno de um projeto terapêutico individualizado, voltado para o tratamento e reabilitação psicossocial, devendo também haver iniciativas extensivas aos familiares e às questões de ordem social presentes no cotidiano dos usuários (BRASIL, 2002).
Portanto, admite-se entender que o CREAS e o CAPS são espaços de produção de novas práticas sociais de lidar com o sofrimento advindo de questões psicossociais de maneira diferente da tradicional. Orientam-se pelo reconhecimento do protagonismo e da autonomia do usuário nas decisões e respostas às situações que vivenciam, propiciando espaço de acolhida e escuta qualificada, fortalecendo vínculos familiares e comunitários, priorizando a reconstrução de suas relações familiares, focando no fortalecimento no protagonismo de cada sujeito (BRASIL, 2006).
3 Objetivos:
3.1 Objetivo Geral
- Refletir sobre as práticas psicossociais ofertadas aos usuários de álcool e outras drogas emsituação de rua, através de articulação dos dispositivos CAPS e CREAS de uma cidade do interior baiano.
3.2 Objetivos Específicos
- Analisar o vínculo construído entre a equipe técnica e o usuário de droga em situação de rua;
- Refletir sobre as propostas de cuidado ao usuário abusivo de drogas, trafegando entre a normatização/proibicionismo (internação fundamentada na abstinência) e o modelo de Redução de Danos;
- Complexificar o processo de decisões (éticas e técnicas) acerca do planejamento das práticas interventivas das equipes de saúde e de assistência social (CAPS e CREAS) ao usuário de drogas em situação de rua.
4. Metodologia
O presente trabalho trata-se de um relato de experiência de caráter qualitativo e descritivo. Elegeu-se como percurso metodológico a autoetnografia, derivada de uma corrente da Antropologia Social, a Etnografia. Cabe salientar que a priori foi realizada uma busca bibliográfica nas seguintes bases de dados: LILACS-Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde, Scientific Electronic Library Online-SCIELO, ambos indexadas na BIREME, PsicoDoc, PsycInfo indexadas na BVS-Psicologia;
A Etnografia é uma abordagem metodológica que possibilita um a imersão em um modo de vida, em um universo cultural, geralmente alheio e distante daquele vivido pelo pesquisador. Desenvolvida pela Antropologia, tal abordagem metodológica permitia que o pesquisador compreendesse os padrões culturais de determinados grupos sociais, inicialmente tribos exóticas, cujas regras e comportamentos eram considerados como exprimindo complexidade mais reduzida. À medida que a Antropologia desenvolvia teorias, também complexificava a ampliava tal metodologia, passando a interessar-se pela compreensão do fenômeno urbano, mais especificamente a dinâmica cultural e as formas de sociabilidade nas grandes cidades contemporâneas.
De modo sintético, Magnani (2009) entende a etnografia como uma forma especial de operar em que o pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte, sem ter que necessariamente permanecer lá ou mesmo testar a lógica de sua visão de mundo. A autoetnografia, por sua vez, enquanto olhar humano, permite que o investigador construa conhecimento sobre uma realidade social socialmente construída e historicamente mais ou menos determinada, integrando a experiência pessoal, profissional e política em uma única performance crítica.
Partimos de um cenário em que a complexidade das demandas alia-se ao poucos recursos sócioassistenciais disponíveis, o que fica evidenciado na carência de metodologias que produzam respostas efetivas e que atendam de modo integral e resolutivo as demandas relacionadas às pessoas usuárias de substancias psicoativas com um agravante “em situação de rua”. Este relato de experiência, portanto, propõe um olhar de perto e de dentro, do universo do cuidado a estes sujeitos, especificamente das relações institucionais articuladas em torno de uma pessoa em situação de rua usuária de álcool, atendida por tais serviços, a que chamaremos de Pedro.
Esta autoetnografia refere-se a um caso acompanhado por mim como psicóloga do CREAS, assim como pela equipe técnica do CREAS em conjunto com a equipe do CAPS, em um município do interior baiano De um modo geral, a internação em centro de recuperação para dependentes químicos (comunidades terapêuticas) vinha sendo adotada como única estratégia de cuidado aos usuários de substâncias psicoativas por ambas as instituições. . Escolhemos o caso de Pedro justamente por ele haver recusado adaptar-se a tal modelo e impor às equipes o desafio de construir outras estratégias de cuidado que não estivessem fundamentadas em práticas disciplinares ou de cunho religioso, baseados predominantemente na internação e segregação.
A escolha por discutir e analisar este caso relaciona-se a outro fator: embora Pedro esteja em situação de risco e vulnerabilidade social (usuário de drogas em situação de rua), ele está na rua, mas não permanentemente, tendo em vista que mantém vínculos com a família, retornando ao lar após dias e até meses fora do mesmo. A discussão objetiva refletir sobre os efeitos das intervenções propostas, no sentido de compreender quais os melhores caminhos construídos para reconstruir e fortalecer os seus vínculos familiares, comunitários e sociais para que Pedro pudesse assumir o controle do uso da substância alcoólica, com responsabilidade e autonomia (RD) através da ação articulada entre as equipes, respeitando suas particularidades e singularidades (recusa à internação, função da bebida em sua vida, etc.,),
É importante assinalar que os aspectos éticos desta pesquisa, foram respeitados. Para tanto, foram seguidos os devidos procedimentos: a entrega do TERMO DE COMPROMISSO PARA USO DE DADOS EM ARQUIVO ao CREAS e ao CAPS em que a pesquisadora assume o compromisso de: preservar a privacidade do usuário cujos dados foram coletados; que as informações foram utilizadas única e exclusivamente para a execução do referido estudo; que as informações somente serão divulgadas de forma anônima, não sendo usadas iniciais ou quaisquer outras indicações que possam identificar o sujeito da pesquisa ou mesmo a cidade de origem; que serão respeitadas todas as normas da Resolução 196/96 e suas complementares na execução deste estudo.
5. Apresentação do Caso Clínico
Há seis meses, devido ao uso problemático de álcool por Pedro (nome fictício), duas senhoras, amigas da família de origem dele, foram ao CREAS solicitar apoio da equipe técnica na mediação de uma internação num centro de recuperação para dependentes químicos. Conforme ambas, em função do uso abusivo de álcool, Pedro estava há um mês, aproximadamente, sem retornar para casa, sem trabalhar, ficando na rua “maltrapilho” e se alimentando de restos encontrados no lixo.
Pedro tem 57 anos, é mecânico e atualmente está desempregado. Antes de amasiar-se com a Sra. Joana (nome fictício, 53 anos), foi casado com outra pessoa, com quem teve quatro filhos, dentre eles, uma adotiva. Pedro está com a atual esposa a mais ou menos 20 anos, mantém uma relação amistosa com os enteados permeada por carinho, respeito e dedicação. Ele comenta: “apesar de eu não merecer, eles cuidam de mim... não quero mais dar trabalho! Sinto vergonha das pessoas, por isso fico aqui na rua” (sic.). Em entrevista com alguns dos enteados, eles afirmam que são gratos a Pedro por tudo que ele fez pela sua mãe e por eles. Comentam:“A gente era criança, quando ele veio morar aqui... nós e nossa mãe não passamos fome porque proveu a casa” (sic.).
O vínculo estabelecido com os seus filhos e com a ex-mulher é marcado por um distanciamento afetivo e por conflitos entre eles. Quando Pedro refere-se aos filhos, demonstra tristeza, ressentimento e arrependimento por ter se distanciado tanto dos filhos em função dos problemas que têm até hoje com a ex-mulher. Conforme relato dos familiares e do próprio usuário, esta situação contribui para que ele faça uso constante de bebida alcoólica: “bebo para esquecer isso tudo” (sic.). Essas relações conturbadas fazem parte do universo de sofrimento em que vive.
De acordo com os familiares e amigos de Pedro, o grupo de amigos em situação de rua, também usuários de álcool e, é bastante influente em sua vida. A bebida alcoólica passou a fazer parte do universo do usuário, aos 19 anos, após o término de um relacionamento afetivo (rompimento de um noivado). Importante salientar que nesta época, o álcool não trouxe prejuízos significativos a sua vida. Por quase duas décadas, a bebida era utilizada nos fins de semana: “bebia socialmente” (sic.).
Há dez anos, Pedro passou a beber diariamente, ficando na rua por dias e até meses. Os familiares procuravam-no na rua todas as vezes que o mesmo não retornava ao lar: “a gente encontrava ele caído na rua” (sic.). Pedro não apresenta alteração comportamental significativa: “Ele é tranquilo... Fica mais a vontade, mais comunicativo e demonstra mais carinho por nós” (sic), conforme fala de um dos seus enteados. Apesar disso, comentam que estão cansados de tentar ajudá-lo, já que se mantém no mesmo modo de vida.
Pedro é considerado um excelente mecânico, mas o uso prejudicial da bebida é um impeditivo para executar sua função de maneira exitosa. Ultimamente trabalha somente para comprar a substância. Embora ele não saiba especificar, ingere mais de uma garrafa de cachaça por dia. Bebe a maior parte do dia, aborrecendo-se quando não pode beber. O uso só cessa quando Pedro passa a ter problemas de saúde física (como dores abdominais, rachaduras nos pés, mãos e boca, etc.,). Logo que se recupera, reinicia a ingestão da bebida.
A mãe de Pedro e sua única irmã residem a quase 500 km de sua cidade. Ao longo destes últimos dez anos, ele ficou por um ano com a sua família e durante este tempo ficou sem beber. Depois que retornou ao interior, passou mais um ano mantendo-se estável no trabalho e se reintegrando socialmente e à vida em família.
Ao restabelecer relações com os amigos (grupo de alcoolistas), recomeçou a ingerir bebidas alcoólicas e, desde então, os prejuízos nas relações familiares, sociais e ocupacionais foram prejudicadas cada vez mais.
Diversas propostas de cuidados foram feitas a Pedro, desde acompanhamento psicossocial no CAPS à internação em um centro de recuperação para alcoolistas, mas ele não aceitou- Diz Pedro: “não vou ao CAPS, pois lá é lugar para doido” (sic.). Quanto à internação, os familiares já quiseram interná-lo involuntariamente, já que ele não demonstra motivação.
Nas abordagens realizadas pelas profissionais do CREAS e do CAPS, ocorridas na rua, em locais variados, Pedro mostrou-se arredio e resistente ao primeiro contato. O plano terapêutico delineado pelas equipes apresentava diversas intervenções, como por exemplo, propor um engajamento de Pedro num grupo de apoio para alcoolistas e a participação em oficinas no CAPS. No entanto, ele relatou que estava sem documentos, afastou-se, dizendo que iria providenciá-los e que procuraria as profissionais posteriormente. Não o fez. Em algumas circunstâncias, em plena luz do dia, a abordagem ocorreu quando ele dormia pelas calçadas, rodoviária, praças e mercado municipal. Poucos foram os momentos em que Pedro estava acompanhado por um ou mais pessoas em situação de rua.
No segundo contato, apresentou-se receptivo às técnicas, falou sobre o seu cotidiano na rua, sobre o uso da bebida e sobre as relações que o mesmo estabelece em sua vida familiar e comunitária. Apresentou-se choroso enquanto relatava sobre sua história de vida e sobre as perdas que teve em decorrência do uso da bebida e antes mesmo dele beber. Referiu que precisava de ajuda e que aceitaria a internação num centro de reabilitação. Depois do acolhimento e escuta realizada, a pedido de Pedro, ele foi levado em casa.
Após realização dos procedimentos para encaminhá-lo à comunidade terapêutica, localizada a 56 km do município em que reside, a equipe retornou à casa de Pedro e ele já havia voltado para a rua, desistindo da internação, segundo seus familiares. Como a motivação do usuário é critério para ser incluso nestas comunidades terapêuticas, Pedro então não poderia ser internado involuntariamente. Vale assinalar que este também não era objetivo da intervenção da equipe técnica. Encontrado na rua, propôs-se ao usuário atendimento psicológico individual, inclusão num grupo terapêutico da rede sócioassistencial, no próprio município, e ele aceitou.
Ficou acordado entre a equipe e o usuário que em suas primeiras idas ao grupo, o carro disponível pela Secretaria de Ação Social iria buscá-lo em casa. No entanto, no dia e horário combinado ele não estava presente. Realizou-se uma busca nos locais que costumeiramente ficava, mas não foi encontrado.
Entendendo que era importante encontrar Pedro, foram feitas novas tentativas (rua, casa). Nestas circunstâncias eram realizadas escuta e orientações aos familiares sobre os atendimentos em grupo para usuários abusivos e também para as famílias. Acompanhado pela esposa, compareceu ao atendimento grupal três vezes.
Ao longo do processo interventivo, o usuário estabeleceu vínculo comigo (como psicóloga) e também com a Terapeuta Ocupacional. Percebemos que o mesmo não estava se sentido à vontade, pois não se sentia acolhido pelo grupo. A equipe, então, propôs uma nova estratégia: atendimentos psicossociais individuais para Pedro e apoio e orientação aos familiares, especialmente a sua esposa. Ambos aceitaram. Além disso, sua família foi encaminhada ao Posto de Saúde da Família- PSF. Esta aliança concretizou a possibilidade de uma aproximação maior entre mim, enquanto técnica (psicóloga), e Pedro, enquanto usuário. Durante esta construção, Pedro demonstrou conscientização dos prejuízos decorrentes do consumo excessivo do álcool, construiu hipóteses sobre a função que a “bebida” desempenhava em sua vida (“anestesiar angústias, ressentimentos, mágoas e o sentimento de fracasso diante das ‘famílias’”) e, pôde ressignificar algumas questões importantes acerca de seu lugar no mundo.
Embora tenha demonstrado certa dificuldade para cumprir os acordos, o usuário compareceu em alguns atendimentos (muitos deles, sem o uso da substância). Os avanços foram valorizados. Assim, os atendimentos baseados na proposta da redução de danos seguiram com metas intermediárias, sem imposição e sim através de negociações acerca dele evitar colocar-se em risco, melhorar ou retomar o relacionamento familiar e recuperar a atividade profissional. Isto é, as mudanças na sua relação com as drogas e com a rua eram discutidas com o próprio sujeito.
A cidade dispõe de poucas oportunidades de emprego. O município depende basicamente da prefeitura e da agricultura (que sofre períodos longos de estiagem). Pedro estava encontrando dificuldade para conseguir se reinserir no mercado de trabalho como mecânico (diante de sua credibilidade afetada). Assim, foi inserido nas “frentes de trabalho” (em regime temporário), em um projeto da Secretaria de Ação Social, mas não se adaptou.
O desfecho da história deste caso clínico se deu com a ida de Pedro para Salvador. Ele resolveu viajar a convite da irmã e por iniciativa própria, no momento está sem beber e tentando reorganizar a sua vida (buscando emprego na capital).
5. Resultados e Discussão
A reflexão sobre a ética do cuidado ao usuário abusivo de álcool em situação de rua é o fio condutor deste trabalho. Num diálogo a partir de uma revisão literária e uma auto-etnografia (baseado em relato de experiência), entende-se que discutir esta problemática é de grande importância visto que o consumo de substâncias psicoativas no cotidiano de grande parte das pessoas em situação de rua expõe-nas a diversos riscos e vulnerabilidades. No caso apresentado, por exemplo, percebe-se que a condição de “estar na rua, recentemente” em decorrência do uso abusivo de álcool contribuiu para a fragilização dos vínculos afetivo-familiares, bem como para romper alguns laços sociais e ocupacionais. Pedro refere que necessita de ajuda, inclusive a internação, porém logo depois recua, afastando primariamente não somente esta forma de ajuda, mas também outras possibilidades (conversar com a psicóloga individualmente ou participar de atendimentos grupais).
É importante salientar que a recusa de Pedro em relação à internação decorria do fato dele ter que ficar afastado de sua cidade, da família e dos amigos, por no mínimo nove meses (processo de reabilitação). Além disso, o centro de recuperação representava em seu imaginário um lugar rígido e disciplinador. Em suas palavras:“meus amigos já foram para lá, muito deles fugiram porque tinham que fazer muitas coisas, trabalhar, participar de cultos... além disso, não pode beber nada, nenhuma ‘pitú’... eu não quero internar não!” (sic.).
Neste cenário, a equipe tinha o desafio de se aproximar do usuário e propor alternativas de cuidado interessantes. As leituras e reflexões disparadas pelo processo da pesquisa fizeram com as equipes de cuidado fosse desafiadas a pensar estratégias que atravessassem o território geográfico e o território existencial (LANCETTI, 2011) para a elaboração de um plano terapêutico singular, visando diminuir os danos, promover a saúde do sujeito, e, por conseguinte, evitar que Pedro passasse a “ser de rua, permanentemente”.
De acordo com Nardi e Rigoni (2006), quando se estabelece a abstinência como condição sine qua non para qualquer abordagem de cuidado, produz-se a segregação dos usuários e impossibilita-se o acolhimento destes nas políticas de saúde. Diante do exposto, adotou-se esta estratégia no caso Pedro, considerando que a redução de danos prescinde do imperativo da abstinência, e comporta uma dimensão clínica de integralidade e de ética de cuidado, tendo importante função política na construção da universalidade do acesso aos serviços de saúde e sócioassistenciais (LEMKE, 2009).
Partindo de premissas básicas da Reforma Psiquiátrica, das Políticas do SUS e SUAS, e como máxima a atual Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, o trabalho das equipes geriu-se no sentido de proteger integralmente o usuário (Pedro) dos riscos pessoal e social derivados do seu modo de vida, contextualizando as problemáticas na complexidade que lhe são inerentes e inventando estratégias que permitissem que a vida não interrompesse seu movimento de expansão. Portanto, atuando necessariamente na contramão do proibicionismo, a prática dos profissionais engajados neste trabalho se operou na lógica de Redução de Danos, de afirmação e ampliação da vida (LANCETTI, 2011).
A construção deste cuidado foi bastante complexa, e quando se propôs uma terapêutica, seja ela uma ida ao médico, sessões de terapia individual, familiar, agenciamentos ou qualquer estratégia, a equipe automaticamente foi demandada a praticar uma negociação inerente à democracia psíquica do sujeito (LANCETTI, 2011). Em outras palavras, a elaboração deste projeto terapêutico foi antecedida por um desejo da equipe de, a partir do contato direto e da escuta, aproximar-se e estabelecer um vinculo de confiança com o usuário, entendendo sumariamente que a construção do plano terapêutico deveria respeitar à singularidade e especificidade do sujeito e do seu universo.
Segundo Lemke (2009), a RD, alternativa ao paradigma da abstinência, é um modo de trabalhar em Saúde Coletiva que tem produzido resultados importantes com determinados grupos populacionais que costumam ter dificuldade de acesso aos serviços por questões relativas ao preconceito e ao estigma social, como é o caso do usuário de drogas com o agravante de ser morador de rua. Vale ressaltar que a RD reconhece a possibilidade de estabelecer a abstinência como um objetivo possível, porém não a considera uma exigência, nem condição para o tratamento.
Neste sentido, opera a partir de metas escalonadas, que podem ser a simples diminuição do uso, a substituição de uma substância por outra menos nociva (crack por maconha, por exemplo), a substituição da via de administração (cocaína injetável por inalada, por exemplo) ou apenas a administração da substância de modo mais seguro (substituição de seringas usadas por novas e instruções sobre como administrar de modo mais seguro, por exemplo) (MARLATT, 1999; BASTOS, 2003, citados por LEMKE, 2009).
Este exercício político e a construção do cuidado em relação a este usuário aconteceram numa ética territorial de cuidado em consonância com a Reforma Psiquiátrica e com a lógica da redução de danos traduzida a partir de práticas no contexto de vida dos usuários, respeitando o mundo do sujeito, acompanhando-o em sua singularidade, ou seja, em sintonia ao seu modo de vida (LEMKE, 2009; BRASIL, 2003. a).
Lancetti (2011) assinala que a concepção da RD tem plena sintonia com a posição ética das equipes de saúde: “o trabalhador de saúde não é a favor do traficante nem do policial. Ele é a favor da vida” (p.81). Ainda para o autor, a postura ética do redutor de danos produz territórios de cuidado, tolerância e solidariedade que são verdadeiros antídotos ao narcisismo mortal do uso suicida de drogas. Destarte, a RD, além de comportar uma dimensão clínica de integralidade e de ética de cuidado, tem a potencialidade de produzir um desvio que consiste em criar uma experimentação de vida, cuidado e solidariedade, justamente onde os movimentos têm um potencial de morte (LANCETTI, 2011).
Assim, as práticas sócioassistenciais impostas no contexto em que Pedro estava inserido possibilitaram, paulatinamente, a experimentação da singularidade e do seu estilo