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26/02/2014
O LUGAR DO ANALISTA E SUAS POSSIBILIDADES
por Fernanda Augusta

O presente artigo exprime o objetivo de circular por entre os lugares que o analista ocupa, bem como pela construção desse lugar e suas implicações no processo analítico. Pretende discutir acerca das (im)possibilidades do tratamento com dependentes químicos considerando os atravessamentos do mesmo e seus reflexos no analista.

Palavras-chave: Lugar do analista; Transferência; Psicanálise.

Abstract: The present article states the objective of circulating among the places that the analyst occupies, as well as for the construction of this place and its implications in the analytical proces. It intends to the same argue concerning the (im)possibilities of the treatment with addicts considering the difficulties and the consequences in the analyst.

Key - words: Place of the analyst; Transference; Psychoanalysis.

A contemporaneidade evidencia a resistência do mundo à psicanálise e da psicanálise a ela mesma no mundo. Podemos perceber uma dissonância entre a cultura atual e a de outrora, a qual considerava a psicanálise um ideal de eu. A credibilidade da prática da psicanálise fora corrompida, uma vez que os próprios psicanalistas resistem à análise. Dessa forma, as reações terapêuticas negativas não seriam, em determinada medida, produto da resistência da própria psicanálise a ela mesma e/ou dos próprios psicanalistas em relação à análise?
O lugar do analista deveria estar colocado antes do lugar do paciente, esse o dependente químico, embora aquele lugar (do analista) sofra os atravessamentos do processo, concomitantemente às retificações desse. A prática do analista de uma “normatização” do sujeito é muitas vezes percebida, considerando, assim, uma pretensão, até mesmo inconsciente, de adaptar o ser no mundo. Portanto, a transformação da dinâmica pulsional que deveria ocorrer em direção ao desejo do sujeito, é negligenciada, excluindo, então, a prática da psicanálise.
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Segundo a teoria psicanalítica freudiana, o analista pode ocupar lugares em formas diferentes num processo. A técnica analítica visava tornar consciente o inconsciente, através da interpretação, revelando ao sujeito a verdade. E através do uso da razão o sujeito poderia elaborar e abdicar-se de seu desejo, transformando o processo primário em secundário. Aquilo que se constituía como um risco à conservação deveria ser anulado, renunciando às verdades que invadiam, bem como desviavam o sujeito da auto-preservação. Nessa perspectiva, o analista ocuparia o lugar de intérprete, aquele que decifra a verdade inconsciente e a comunica ao analisando. Esse lugar seria a representação de uma intelectualização daquele que descobre, que conecta, que desvenda os mistérios.
A pulsão fora percebida, segundo Freud, como uma irrupção interminável que poderia ser subjugada como impetuosa invasão na realização de movimentos sobre as excitações. Assim, a repetição em análise apresenta tal possibilidade, a qual ocorreria através da transferência.

De fato, a repetição feita pelo paciente determina que, quanto mais o processo analítico se aprofunda, mais a resistência por meio da regressão busca satisfação das pulsões no campo da transferência. Assim, a verdade se revela por meio da repetição, denunciando a realidade psíquica do sujeito. (CASTIEL, 2003)

Ressalto que sempre que me refiro à análise, estou considerando o processo do dependente químico, ainda que não ocorra efetivamente uma análise, até mesmo por contingências ambientais. Porém as especificidades do lugar do analista e do paciente, nesse caso, o dependente químico, podem ser consideradas da mesma forma que num processo analítico de um consultório, conquanto algumas alterações e conduções podem também ser estruturadas de outra maneira que não a do consultório.
Segundo Oliveira e Silva (2006), através do vínculo transferencial ocorre a abertura do inconsciente, acessando a verdade acerca dos sintomas, assumindo como sujeito dos próprios desejos. A Psicanálise se estrutura numa experiência dialética entre a pulsão e sua simbolização, pela qual perpassa o fenômeno da transferência.

Se o discurso analítico estabelece um vínculo social, não é a intersubjetividade que estrutura a situação analítica. Nenhum encontro de pares, mas sim de um só sujeito, o sujeito inconsciente do paciente. (OLIVEIRA; SILVA, 2006)

A análise se torna cada vez mais uma experiência intersubjetiva, na qual o analista poderá possibilitar a simbolização daquilo que é repetido, bem como retificar os caminhos pulsionais para que exista a satisfação pulsional, preservando a alteridade do sujeito. Dessa forma, a renúncia ao pulsional não seria considerada, mas direções alternativas e, até mesmo, profícuas da força pulsional, não negligenciando o desejo do sujeito.

A análise [ou o processo de tratamento do dependente químico, ainda que na comunidade terapêutica] implica que analista e analisando possam, juntos, construir destinos para as forças pulsionais e inscrevê-las no universo da simbolização. (CASTIEL, 2003)

Segundo a teoria freudiana, o analista se ofertaria como objeto para a pulsão, propiciando uma movimentação dessa. O analista estaria implicado no processo, distante em determinada medida, presente com seu inconsciente. Tal posição contempla a possibilidade de ocupar o lugar de “sustentar a demanda, estar e não estar”, segundo Castiel (2003). Derrida (2003), ao dizer da hospitalidade, comenta ”que o deixe vir, que lhe ceda lugar, que o deixe chegar, sem exigir reciprocidade, nem mesmo o seu nome”. Assim, podemos inferir que o analista ocuparia um lugar, no qual estaria apartado do seu eu, conquanto não de seu inconsciente, mas exatamente esse que se faria presente.
O lugar do analista é eminentemente movido por um desejo, porém não o desejo da mesma ordem que se manifesta no desejo do analisando. O desejo do analista não se apresenta como um desejo singular dele, mas o desejo de que a análise, o processo, ocorra. Uma longa análise permite a construção do analista, mesmo que essa seja interminável, bem como são também intermináveis os seus desejos que, como do analisando, são sempre infantis, inconscientes e inextinguíveis. É através de sua análise que o analista desenvolve outras formas de lidar com o inconsciente, bem como a condição de reconhecer o que é desejo e o que não é.

Do lado do analista, supõe-se uma análise anterior e, conseqüentemente, que ele suporte e reconheça o seu não saber da particularidade do desejo do analisante. (FALCÃO, 2005)

Dessa forma, podemos dizer que quando um analista não aceita um analisando, diz de seus pontos cegos, de suas resistências, o que representaria que o desejo de analista não pôde ser operado naquela situação. O analista é quem guia o tratamento, conquanto não seja ele que guiará as esferas do sujeito, tampouco o seu desejo; mas é fazer advir o saber do sujeito sobre si mesmo, através da transferência.
O analisando direciona-se ao analista como se fosse seu objeto de amor, como um Sujeito suposto saber, e assim, o analista devolve, reendereça tal suposição ao analisando, ao seu inconsciente. O analisando, segundo Falcão (2003), “ama o saber que supõe no analista”. Porém o analista não deve atender a tal demanda, uma vez que isso ocasionaria a ignorância à verdade do desejo do analisando.

O Amor do analisante é uma tentativa de encobrir o desejo. Sabemos que o amor pertence ao registro do imaginário, conseqüentemente, o amor ao Sujeito suposto saber é uma ilusão, tentativa de fazer Um. O desejo, entretanto, é particular, do campo do Simbólico, do Outro, da diferença. Um analisante me dizia: “Não sei o que dizer”, ao que eu lhe disse: “E é preciso saber?” Não é preciso saber para fazer análise, é preciso, primordialmente, falar. (FALCÃO, 2005)

O saber operante no processo não consiste num saber consciente, mas se configura de outra ordem, da natureza do recalque. Segundo Lacan (1992), no Seminário VII , a frase, “Moi, la verité je parle” (Eu, a verdade, falo, pág. 333), expressa de maneira significativa a verdade existindo na fala, embora não caracterize a verdade, uma vez que essa não poder ser toda dita.

Há sempre um meio-dizer, porque, estruturalmente, se a verdade pudesse ser dita toda não restaria nada marcando o recalcado. Assim, a verdade não-toda pode ser dita. Há algo que escapa sempre, o real do Simbólico chamado, algumas vezes, o umbigo do sonho, fenda que marca o sujeito para sempre como barrado, dividido. (FALCÃO, 2005)

O analista ocupa um lugar de articulação e deve estar ciente de que não é, de fato, o objeto do analisando, mas que se inscreve no lugar do semblante de objeto a.

O objeto a é um vazio que a pulsão contorna e tem uma realidade puramente topológica. Como tal tem uma função separadora na relação do sujeito ao Outro. Não é o objeto do desejo, mas o objeto que falta, o objeto causa do desejo. Pode ser pensado como um nada, um núcleo de não-saber, em torno do qual se organiza o mundo do desejo. (RINALDI, 1996)

E é através da transferência que o analisando poderá repetir e elaborar, inicialmente conferindo ao analista a posição do Outro, de Sujeito suposto saber e, no decorrer do processo torna-se possível que o analisando perceba que é detentor de seu saber.

É isso que confere ao significante sua potência ou sua dominância: o fato de funcionar como semblante. Se o psicanalista ocupa este lugar, por sua vez, ele faz valer a função do objeto como desarmado da significação que o analisando, no entanto, lhe confere em sua fantasia. (COTTET, 1987)

O analista oferece meios para o analisando repetir na relação com ele a pulsão e seus significantes, conquanto a interrupção disso ou o malogro do processo em questão seja entendido como a resistência do analista, obstruindo a simbolização do imaginário. Falcão (2005), diz que no primeiro Seminário de Lacan, ele explicita que a resistência é sempre do analista.

O desejo do analista é que o analisante retorne à sessão e continue a experiência da análise. A transferência é, principalmente, do analista à psicanálise. A transferência do analisante ao analista é efeito da operação do Desejo do analista. É nesse aspecto que ele faz entrar seu desejo, Desejo do analista, esvaziado de conteúdo, desejo de obter a diferença absoluta. (FALCÃO, 2005)

Dessa forma, o desejo do analista deve possibilitar a abertura do discurso do analisando para que, segundo Falcão (2003), “ele possa articular sua fala até o possível do recalcado e possa ir além do seu fantasma a partir do seu saber do Real”.

Eu insisti freqüentemente nisto, que nós somos supostos saber não grandes coisas. O que a análise instaura é justamente o contrário. O analista diz àquele que está para começar - Vamos lá, diga qualquer coisa, vai ser maravilhoso. É ele que o analista institui como sujeito suposto saber. (LACAN, 1992)

O lugar do analista constitui-se de maneira interminável, sendo considerado um equívoco, até mesmo ético, a titulação de analista através de um curso, de uma formação. O saber fazer do analista estará sempre em construção, por isso a importância de sua análise, bem como da supervisão.

A supervisão se encarregaria dessas partes não analisadas do analista, através do assinalamento dos pontos em que a escuta do analista parece afetá-lo de uma forma especial, pontos em que há necessidade de elaborar a contratransferência vivida na relação com o paciente. (GARRAFA, 2006)

Podemos perceber os atravessamentos do processo de construção do analista e do lugar que esse ocupa. São inúmeras as manifestações de resistência, o que poderia suscitar uma crise da prática psicanalítica, bem como sustentar o estigma já existente socialmente acerca da psicanálise. O momento atual urge em reflexões de tal prática, uma vez que aquele que procura o Sujeito suposto saber, barrado ou não, ou um objeto para seu próprio gozo, no caso de alguns perversos, poderá causar reflexos no analista que devem ser escutados por ele mesmo. A neutralidade é inexistente, por isso o cuidado em estar dentro e fora concomitantemente do processo analítico de seu analisando.
A partir de tais considerações podemos explicitar questões acerca da prática do psicanalista no tratamento com dependentes químicos.

SUBJETIVIDADE E SUAS (DES)CONSTRUÇÕES

Entende-se que, segundo Mameluque (2005), a subjetividade configura uma instância erigida social e culturalmente constituindo a unicidade de cada indivíduo, assim como se percebe que as práticas estatais determinam as relações humanas inferindo sobre a subjetividade do sujeito, o que implica na constante elaboração e revisão do sistema penal e das intervenções realizadas perante a sociedade. “... primeiro se dá a relação, e dela deriva o self, que se forma no processo de entrar e sair, de estar dentro e fora dessa relação.” (MAMELUQUE, 2005, pág.3). Maria de Glória Caxito Mameluque, apresenta em seu artigo a trajetória dos complexos carcerários, a subjetividade construída mergulhada na lei e suas configurações na atualidade para a Psicologia Jurídica. Segundo ela o sistema prisional prejudica a resignificação subjetiva do encarcerado. Dessa forma, os dependentes químicos que cumprem alguma sentença ou se encontram em processo judicial, necessitando de comparecer à audiências, poderiam expressar, durante esta trajetória, reflexos que prejudicariam o processo de recuperação, por exemplo, dentro de uma comunidade terapêutica.
Embora no fim do século XVIII e início do XIX tenham existido grandes fogueiras a espetáculo punitivo, esses rituais foram se extinguindo na tendência à reeducação do sujeito, porém ainda permanece o paradigma de que a punição, outrora severa, ora subserviente ao espaço que se encontra o sentenciado, institui a cura, a correção naquele e assim a restituição de sua condição humana. Com isso “a punição foi se tornando a parte mais velada do processo penal.” (MAMELUQUE, 2005, pág.3), submetendo os sentenciados ao isolamento desprovido de quaisquer condições sociologizantes embora extinguindo o suplício do corpo. Entretanto a prisão age como um espaço em potencial de reafirmação dos comportamentos que introduziram o sujeito lá, em descaso da sua subjetividade que consiste em sentimentos, idéias, condutas, significados, símbolos, emoções, entre outros.
A comunidade terapêutica se apresenta em contrapartida aos cárceres como uma alternativa de resignificação subjetiva, bem como do resgate a si mesmo, no intento de reconstruir e integrar aquilo que fôra despedaçado da personalidade do sujeito. Com isso, a possibilidade de transformar a autodestruição em espaço de cura se mostra bastante relevante, não existindo o caráter punitivo às práticas do uso de drogas lícitas e ilícitas.
No final do século XIX a punição física assistida pela maioria fora extirpada, ocorrendo uma flexibilidade da severidade penal. É nesse período que se institui a detenção como fim punitivo. Segundo Mameluque (2005), o encarceramento surgiu com o progresso das idéias e da educação dos costumes, relegando ao esquecimento outras formas de punição já imaginadas pelos reformadores. Percebe-se assim que a prisão confidencia em lugubridade um lugar em forma de aparelho com a finalidade de transformar o indivíduo, à priori apenas afastá-lo da sociedade, uma vez que, esse exprime ameaça moral e física aqueles providos de condições favoráveis de escoamento e manejo da agressividade instintiva.
A comunidade terapêutica, embora também exprima relações semelhantes às condições penais, como o afastamento dos centros urbanos, apresenta-se numa outra perspectiva para o dependente químico. A tentativa de afastá-lo da família, da cidade e outros espaços em potencial ao uso das drogas, não desconsidera a subjetividade do residente da comunidade terapêutica; ao contrário, a esse são oferecidos inúmeros recursos que favorecem a produção tanto material quanto subjetiva, não excluindo o sujeito como o é na prisão.
O recluso prisional é obrigado a suprimir sua individualidade delegando em segundo plano sua subjetividade, uma vez que, sua alteridade é corrompida e não mais processada favoravelmente para a reestruturação. Dessa forma, sua instância mediadora dos instintos e da lei torna-se mais deficiente, impossibilitando a inserção social do sujeito e transformando-o muitas vezes num homem ausente de capacidade pensante e moralmente dissecado. O sistema prisional apresenta à sociedade esse homem como objeto de arrependimento, fragilizado perante o outro e destituído de forças para seu próprio engrandecimento como ser humano. Assim os encarcerados tornam-se indivíduos ociosos ou intensificam suas práticas marginais ao se libertarem desse complexo altamente reducionista. Abre-se aqui um espaço para a reflexão acerca das possibilidades de reconstrução do encarcerado e da necessidade de educação efetiva. A punição e o isolamento espacial, destituídos do acolhimento capaz de humanizar, esse encontrado muitas vezes em comunidades terapêuticas, só configuram a inversão de papéis, segundo Mameluque (2005), atribuindo ao espaço, à penalidade, aos juízes a figura de assassino, representada na tirania caricatural.
Tentar curar um sentenciado sem a presença de condições profícuas que vislumbrem o entendimento de si mesmo, e que permitam sua inserção em contextos produtivos capazes de equilibrar suas pulsões, só intensifica o distanciamento do que o próprio sistema penal propõe a alcançar. Inclusive, assim, percebemos que a criminalidade aumenta significativamente, repetitivamente, como um grito, em desespero, pelos próprios praticantes marginais. Todo o complexo penitenciário pode ser mantido, e aplicado, porém necessita ainda de outras ferramentas que possam neutralizar alguns reflexos iminentes e conduzir o encarcerado para seu fortalecimento social assim como para a resignificação de sua estrutura subjetiva alcançando mérito “dentro e fora de casa”. Essas condições podem muitas vezes ser encontradas nas comunidades terapêuticas. Seria de extrema importância que esse espaço dialogasse com a esfera jurídica a fim de reestruturar algumas delimitações carcerárias e produzir efetivamente a possibilidade da resignificação e apropriação de um self verdadeiro.
“A subjetividade é uma espécie de argila que vai sendo modelada sob a cultura dominante de cada sociedade.” (MAMELUQUE, 2005, pág.9). Torna-se passível de transformação eminente a subjetividade do dependente químico, já que também, todo ser humano segue sempre em direção à realização construtiva, à saúde. Para isso é necessária a disposição de diversos estímulos combinatórios que atendam a cada sujeito especificamente, sendo esses percebidos, também, em processos de escuta no manejo interpretativo transferencial de uma relação analítica.
Segundo Mameluque (2005), não é possível aprimorar a situação do encarceramento, já que o complexo psicológico salubre necessita veementemente de condições sociais externas ao espaço do encarcerado.

Gostaria de salientar que nossa utopia é pôr fim aos encarceramentos. Ninguém pode “melhorar” em situação de encarceramento. Sabemos que saúde psicológica se produz com laços sociais fortalecidos, com acolhimento, com possibilidade de fortalecimento do sujeito, com empoderamento, com ampliação da capacidade de intervenção transformadora da realidade. Em presídios, manicômios, febens, dificilmente conseguiremos esse intento. Mas sabemos também que a transformação social não se faz da noite para o dia, e que precisamos estar lá, nesses diversos locais, para participar da sua transformação. Estamos e estaremos trabalhando no sistema prisional; comprometemo-nos a fazer, do nosso trabalho nesses espaços, uma contribuição crítica e respeitosa, tecnicamente competente e ética. Sabemos que há uma leitura a ser feita que é de nossa competência: a leitura da dimensão subjetiva da vivência do encarceramento. (MAMELUQUE, 2005, pág.10).

É importante salientar que aqui estamos tratando apenas da classe de dependentes químicos, conquanto algumas considerações se aplicariam também a delitos graves.
Acredita-se na possibilidade de tratamento da subjetividade do sujeito através de outras ferramentas, tais como um psicólogo, esse facilitador no manejo da estrutura antecedente e atual do sujeito em virtude de sua nova constituição após o período de reclusão. Um profissional capaz de discernir, entender, compreender e direcionar o dependente químico, na criação de um ambiente, engendrando uma atmosfera provocativa do progresso psicológico, superando o regime classificatório dos comportamentos dos indivíduos. Torna-se viável assim o comprometimento do próprio sujeito, consigo e com o outro, recebendo a atenção necessária para ser de fato e existir, rompendo com a sua condição de estar.
Acolher o dependente químico efetivamente para ser escutado sem julgamentos ou rejeição, torna-se um elemento fundamental para que esse possa acessar à consciência, materiais relevantes para o andamento do processo sobre a sua subjetividade alterada e corrompida. É nesse discurso, do dependente, que suas mazelas serão manifestadas, livremente. Não obstante, segundo Oliveira e Silva (2006), o psicólogo deve manter um distanciamento psíquico do paciente para alcançar o entendimento e as peripécias da situação, para então reconstituir mentalmente as experiências do sujeito. “Após uma breve experiência afetiva (em que lhe dedicamos contato emocional empático e recíproco) o paciente adquiriu uma espantosa capacidade de nos induzir a reagir a sua demanda de atenção.” (OLIVEIRA; SILVA, 2006, pág.4).
Percebe-se a importância da construção de um vínculo transferencial para a efetividade do processo, ainda que esse realizado em comunidades terapêuticas. Para isso, torna-se necessário uma expressão quantitativa bastante significativa de profissionais da área, conferindo afeto e inteligibilidade à demanda subjetiva dos residentes. Em tais condições pode ocorrer uma abertura para desvendar o emaranhado do enigma que sucumbe a existência daquele sujeito, atentando para a sua constituição humana.
Khan (1977), apud Oliveira e Silva (2006, pág.5), disse: “é a psique um refúgio, um lugar no qual o self ausente pode gozar do direito de asilo.” Assim podemos inferir que o dependente químico encontra-se exatamente nesse lugar de ausência, de masmorra, se construirmos o curso de suas ações através da escuta.
Segundo Oliveira e Silva (2006) Lacan propõe que o psicólogo atue como uma espécie de secretário, alguém que receba ao pé da letra tudo aquilo que o paciente exprimir verbalmente, atribuindo muita responsabilidade ao executor da escuta, percebendo o que aquele manifesta em relação aos seus conflitos.

“Trata-se resumidamente, de secretariar sua experiência, organizá-las, nos inserindo discretamente como testemunhas e detetives da relação que o paciente estabelece com o Outro ´´do inconsciente´´.” (Oliveira e Silva, 2006, pág.5).

Representar o saber implicitamente exprime convite ao dependente químico, através do vínculo transferencial, a relatar suas experiências e emoções, para desconstruir e construir o complexo enredado que o faz. Manejar o desejo do paciente torna-se um desafio, uma vez que o psicólogo deverá estar atento para se apresentar como o Outro e também para recusar este lugar, conforme as implicações de ambas as representações na história única daquele indivíduo.
Segundo Oliveira e Silva (2006), torna-se pertinente centrar na pessoa do sujeito, não em seus conflitos fragmentários, tornando relevante a fala do paciente, e utilizando de suporte o manejo da transferência, no acolhimento incondicional, na compreensão empática e na reciprocidade afetiva emergente naquele contexto. Embora todo esse arcabouço se faça presente, poderá ocorrer o que chamamos de transferência negativa, também reconhecida como forma de resistência, dificultando o trabalho proposto e limitando sua produtividade. Essa transferência negativa pode ser verificada quando o paciente destina sentimentos de hostilidade, de desinteresse, estagnação, entre outros, inclusive afetos positivos, impedindo a continuidade, a fluidez do processo em questão. Os aspectos da transferência negativa são muito freqüentes no processo do dependente químico. Dessa forma, é necessário que o psicólogo consiga manejar tais situações a fim da continuidade do processo.
“A nossa postura foi de criar uma situação de escuta que remetesse o paciente a sua verdade, a sua palavra.” (Oliveira e Silva, 2006, pág.8). Essa citação nos remete às contingências transferenciais que permitem a elaboração desse espaço, como já falado, enfocando a subjetividade e singularidade do dependente químico. Exercendo uma escuta atenta, utilizando associações livres, o paciente se depara com o entendimento de suas próprias questões. Expor um raciocínio hipotético-dedutivo numa relação causal precipitada pode configurar o desvirtuamento do quadro estabelecido e incitado a se fortalecer.
Segundo Oliveira e Silva (2006), através do vínculo transferencial ocorre a abertura do inconsciente, acessando a verdade acerca dos sintomas, assumindo como sujeito dos próprios desejos. A Psicanálise se estrutura numa experiência dialética, pela qual perpassa o fenômeno da transferência. “Se o discurso analítico estabelece um vínculo social, não é a intersubjetividade que estrutura a situação analítica. Nenhum encontro de pares, mas sim de um só sujeito, o sujeito inconsciente do paciente.” (OLIVEIRA; SILVA, 2006, pág.9).
Direcionar o olhar para a constituição de sujeito, e para a condição de estar recluso na comunidade terapêutica, através do ato analítico e manejo da transferência poderá gerar construções efetivas ao paciente, bem como um progresso psicológico significativo, através do qual a sua estrutura subjetiva será configurada e manifesta interna e externamente ao complexo terapêutico. O contexto analítico é capaz de provocar o amor de transferência, definindo uma posição particular de objeto restaurador das vias conflitantes do sujeito. Dessa forma, consideramos de grande valia o trabalho analítico com o dependente químico, uma vez que se apresenta como uma ferramenta indispensável para a restituição da esfera subjetiva e, principalmente, para o resgate dos envolvidos, pois o afeto produz transformações.
Segundo Silva (2007), o psicólogo na escuta já está inserido no contexto subjetivo do dependente químico, configurando mais um personagem do cenário em processo de fragmentação para clarificar e elaborar os mecanismos que constituem o sujeito.

Um mapeamento subjetivo das e nas cenas (de violência) relatadas (e vividas), pode ser traçado se o psicólogo não analisa os sujeitos isoladamente, mas sim, analisa o cenário e os personagens de um conflito, reconhecendo que ele mesmo já faz parte deste conflito quando estabelece contato com os envolvidos. (PATRÍCIA REGINA DA MATTA SILVA, 2007, pág.9).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da leitura dos artigos expostos, do entendimento e ampliação desses podemos verificar a relevância da participação efetiva do psicólogo assim como a necessidade de reestruturação dos objetos dispostos no complexo carcerário, podendo receber como referência de alguns destes as comunidades terapêuticas. Ir além do espaço de reclusão evidencia a reconstrução social, na restituição da subjetividade do dependente químico.
A Psicologia necessita de mais investigações e publicações acerca do conhecimento de atuação do psicólogo no contexto da comunidade terapêutica, tanto no que concerne o dependente químico como aqueles que circundam o espaço.
Assim, podemos verificar a necessidade de crescimento do psicólogo inserido na recuperação de dependentes químicos, para atender à demanda da sociedade e do sujeito no processo, provocando e construindo esta. Um grande desafio para a Psicologia, e que promete avanços magnificentes.

Referências

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CASTIEL, S, 2003. Possíveis dimensões do lugar do analista na técnica freudiana. Trabalho apresentado no espaço de Encontro de Psicanálise do Núcleo de Estudos Sigmund Freud.

DERRIDA, J. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a da falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.

COTTET, Serge. Sobre o psicanalista objeto a. Tradução de Jairo Gerbase. Falo: Revista Brasileira do Campo Freudiano, , n. 1, p. 73-80, julh. 1987.

ELIA, Luciano. A transferência na pesquisa em psicanálise: lugar ou excesso?. Psicol. Reflex. Crit. [online]. 1999, vol.12, n.3 [cited 2009-12-03], pp. 00-00 . Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721999000300015&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0102-7972. doi: 10.1590/S0102-79721999000300015. Acesso em: 18 nov. 2010.

FALCÃO, A., 2005. Desejo do analista. Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise. Recife.

GARRAFA, T., 2006. O lugar da supervisão na formação do analista. Revista Percurso, no. 36.

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