Notícias
Na faculdade ouvi muito falar em sensopercepção, delírios, alucinações, ilusões e outras alterações que o pensamento nos prega, quando a eles estamos suscetíveis. São as chamadas doenças sindrômicas, objeto do presente artigo. Existem muitos volteios, vias sinuosas, emaranhados e, por que não, muita complexidade para se entender, um pouco, do que realmente é o agir, a atividade motora, após um intrincado comando do pensamento. É apaixonante e, ao mesmo tempo, intrigante.
O fenômeno de perceber uma voz que não existe (percepção de objeto inexistente) é a alucinação propriamente dita. Ouvir vozes faz parte da sensopercepção e atribuir a elas algum significado faz parte do pensamento e seus distúrbios.
Algumas vezes as vozes alucinadas podem determinar ordens ao paciente, o qual as obedece, mesmo contra sua vontade. Essa situação, de obediência compulsória às ordens ditadas por vozes alucinadas, é chamada de automatismo mental. Oferece alguma periculosidade, já que, quase sempre, as ordens proferidas são, eticamente, condenáveis ou socialmente desaconselháveis.
Normalmente, a alucinação auditiva é recebida pelo paciente com muita ansiedade e contrariedade, pois, na maioria das vezes, o conteúdo de tais vozes é desabonador, acusatório, infame e caluniador. Quando elas ditam, antecipadamente, as atitudes do paciente, falamos em sonorização do pensamento, como se ele pensasse em voz alta ou como se alguma voz estivesse, permanentemente, comentando todos os seus atos: "Lá vai ele lavar as mãos", "lá vai ele ligar a televisão" e assim por diante.
Como parte de minha atividade curricular no Tribunal de Justiça, nas dependências do fórum, onde ocorrem as perícias forenses. Entre elas, existem exames criminológicos, dependência toxicológica, interdição, exames psiquiátricos, entre outros. A perícia é uma avaliação especializada efetuada em indivíduos com a finalidade de esclarecer e auxiliar a autoridade judiciária, policial, administrativa e, até mesmo, particular.
A base legal para a perícia tem respaldo no artigo 145 do Código de Processo Civil, que diz que o juiz será assistido por perito, quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico. Esse perito, designado pelo juiz, deve obedecer algumas exigências, assim como, também, pode escusar-se de suas funções em razão de algum impedimento. O exame pericial, na verdade, constitui um meio de prova.
Discorrerei sobre um caso de interdição, para fins de curatela, em que se pleiteava a interdição da examinanda. As duas estavam presentes. A curatela é o encargo público cometido, por lei, a alguém para reger e defender uma pessoa e administrar os bens de maiores incapazes, que, por si só, não estão em condições de fazê-lo, em razão de enfermidade ou doença mental.
A curatela é sempre deferida pelo juiz em processo de interdição, que visa apurar os fatos que justifiquem a nomeação de curador, averiguando não só se é necessária a interdição e se ela aproveitaria ao arguido da incapacidade, mas, também, a razão legal da curatela, ou seja, se o indivíduo é, ou não, incapaz de reger sua pessoa e seu patrimônio. No caso, a base legal são os artigos 3º, 4º e 1.767 do nosso Código Civil.
ALGUMAS VEZES AS VOZES ALUCINADAS PODEM DETERMINAR ORDENS AO PACIENTE, O QUAL AS OBEDECE, MESMO CONTRA SUA VONTADE. ESSA SITUAÇÃO, DE OBEDIÊNCIA COMPULSÓRIA ÀS ORDENS DITADAS POR VOZES ALUCINADAS, É CHAMADA DE AUTOMATISMO MENTAL
É praxe, quando a pessoa examinada não tem o completo discernimento de seus atos, a pergunta a ela dirigida ser respondida por quem a acompanha. No caso, a irmã respondia a todas. Queixou-se que a interditada era nervosa, de difícil trato, que não tinha paciência com as suas filhas, de comportamento irascível etc.
Após o exame psicopatológico, chegou- se à conclusão de que a interditada apresentava dificuldades de aprendizado, idade mental inferior à sua biológica e visível retardo mental leve (CID 10 - F70). Quadro clínico caracterizado por déficit intelectual com grave prejuízo de suas funções cognitivas e executivas.
Tal quadro, também, a tornava totalmente dependente de terceiros para diversas atividades de vida prática e de vida diária. Sua vida de relação encontrava- se totalmente comprometida. Seria incapaz de sobrevivência orgânica e/ ou social digna, sem a assistência direta de seus familiares, como é o caso. Apresentava total apragmatismo (incapacidade de realizar atos eficientes) de ordem social, profissional, sexual e motora. Nessas condições, foi considerada totalmente incapaz para exercer os atos da vida civil e reger seus bens materiais. Foi considerada, também, totalmente incapacitada para exercer qualquer atividade profissional útil, em caráter definitivo.
Não existia, naquele momento, qualquer indicação clínica para internar-se em hospital psiquiátrico. O que me chamou a atenção, quando de sua entrevista, foi que, a interditada, o tempo todo, sorria e mostrava extremo carinho pelo sobrinho, de tenra idade, que estava no colo da mãe, sua irmã. Seu relacionamento social, ali, era satisfatório.
Quando o psiquiatra perguntou-lhe se via coisas e ouvia vozes, a irmã, prontamente, respondeu que não. Porém, ela, sempre sorrindo, contrariando respondeu: "Coisas eu não vejo; mas, vozes, eu ouço. Sempre". O psiquiatra perguntou-lhe que voz ouvia. Ela respondeu que era uma voz meiga e muito suave, "que só pode ser Deus".
REFERÊNCIAS
BALLONE, G. J.; MOURA E. C. Alucinação e Delírio. In PsiqWeb, 2008. Disponível em: <www.psiqweb.med.br>. Acesso em: 17 mar. 2014
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CID-10. São Paulo: Edusp, 2007.
DINIZ, M. H. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2005. Capítulo II, Da Curatela, seção I.
Site Consultado: http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/105/ouvindo-vozes-o-fenomeno-de-perceber-vozes-que-nao-327595-1.asp