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11/06/2024
Judith Butler: Por um feminismo sem medo do gênero | Entrevista Margem Esquerda

Confira abaixo a entrevista de Judith Butler à Margem Esquerda, revista semestral da Boitempo. Carla Rodrigues, Maria Lygia Quartim de Moraes e Yara Frateschi conduziram a entrevista de abertura da edição n.33, volume especial “Marxismo e lutas LGBT”, do 2º semestre de 2019. Não perca a live de lançamento de Quem tem medo do gênero?, nova obra de Butler que chega primeiro para os assinantes do Armas da crítica, o clube do livro da Boitempo. Saiba mais informações ao final da entrevista.

Apresentação

Judith Butler é uma filósofa estadunidense, nascida em 1956, cuja trajetória pode ser descrita como uma “criadora de problemas”. Referindo-se a uma experiência de infância, ela explica o título de Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, publicado há quase trinta anos nos EUA, e que desde então reverbera nas interlocuções propostas pela autora. “Criar problemas era, no discurso da minha infância, algo que nunca se deveria fazer exatamente para não estar metida em problemas. A rebeldia e sua repressão pareciam ser apreendidas nos mesmos termos, fenômeno que me deu o primeiro discernimento crítico acerca da artimanha sutil do poder: a lei dominante ameaçava com problemas, ameaçava até mesmo nos fazer estar metida em problemas, para evitar que tivéssemos problemas. Assim, concluí que problemas são inevitáveis, e nossa tarefa é descobrir a melhor maneira de tê-los”.1

Quando a pequena Judith começou a criar problemas na escola, desafiando a autoridade da professora e, sendo apontada como uma aluna de mau comportamento, foi punida. O castigo eram conversas de aconselhamento com o rabino da comunidade judaica onde vivia. Surgiram ali as primeiras pistas do seu interesse por filosofia, com indagações sobre a ética existencialista, a expulsão de Spinoza da sinagoga na Holanda e a influência da filosofia alemã na ideologia nazista. Daí em diante, a adolescente de 14 anos, interessada pelo Black Power e outros movimentos que eclodiam à época, começou a ler autoras feministas e foi estudar literatura e filosofia, até chegar a suas pesquisas sobre Hegel com Seyla Benhabib na Universidade de Yale, que também conjugavam seu interesse pela metapsicologia de Freud e pelo pensamento marxista. Esse começo turbulento – de trouble – terminou por marcar com problemas a recepção de Problemas de gênero, cuja publicação também se deu no seio da epidemia de aids. Não obstante ela atribuir ao livro um caráter de trabalho experimental, a verdade é que ele marcou época.

Os quase trinta anos que nos separam da publicação do livro fizeram de Butler uma filósofa em trânsito. Como teórica multidisciplinar, faz a filosofia conversar com a antropologia, a teoria psicanalítica, a ciência política, a sociologia. Ao transitar entre regiões, ela mobiliza filosofia francesa e alemã em proporções quase iguais, transitando entre pós-estruturalismo e materialismo. No intercâmbio temático, ela conversa tanto com o feminismo francês de Simone de Beauvoir quanto com os teóricos da chamada Escola de Frankfurt, passando por Marx, Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan, alguns dos nomes que comparecem nesta entrevista como interlocutores que influenciaram seu percurso filosófico.

O contexto político estadunidense – do 11 de setembro à eleição de Donald Trump – a impulsionou para um diálogo mais intenso com a obra de sua companheira, Wendy Brown, cuja crítica aos processos de desdemocratização está presente nos trabalhos mais recentes de Butler, notadamente Corpos em aliança e a política das ruas,2 e aproximam seu discurso filosófico de problemas contemporâneos brasileiros. É do que ela trata, por exemplo, quando diz que estamos vendo uma nova forma de fascismo, no qual nem sempre há uma quebra explícita com a democracia, e que, em alguns casos, funciona dentro de sua estrutura. Nesse ponto, EUA e Brasil estariam muito próximos, experimentando formas de precariedade induzidas pelas forças financeiras e econômicas que estão intensificando a xenofobia, a homofobia, o antifeminismo, o racismo e uma série de reações violentas aos movimentos sociais.

Por muito tempo classificada como uma filósofa pós-estruturalista, na entrevista ela também atualiza suas próprias definições, declarando-se hoje uma pensadora muito mais próxima da Escola de Frankfurt do que do pós-estruturalismo, o que pode ser percebido como resultado de uma aproximação entre esses dois campos teóricos, pelo menos no que diz respeito ao pensamento feminista. Suas interlocuções mais recentes circulam entre pensadores judeus e palestinos – Hannah Arendt, Emannuel Lévinas, Walter Benjamin, Edward Said –, são decisivas para as formulações do livro Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo3 e também fundamentais para o desenvolvimento do tema de seu trabalho mais recente, A força da não violência: um vínculo ético-político.4 Na entrevista, ela antecipa que no livro propõe repensar o que estamos acostumados a conceber como não violência, visto que esse conceito não pode ser confundido com a ideia de fraqueza. As mulheres e as feministas são de novo – como foram em Problemas de gênero – motor do debate, para o qual ela toma como paradigma o movimento Ni Una Menos, da Argentina, onde ela esteve há pouco tempo, e as paralisações promovidas pelas mulheres em diferentes países do mundo, além da necessidade de enfrentamento do feminicídio.

A filósofa esteve duas vezes no Brasil, a primeira delas em 2015, onde cumpriu agenda acadêmica na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e ainda participou de seminário sobre teoria queer em São Paulo. Dois anos depois, em 2017, voltou como organizadora do seminário “Os fins da democracia”, realizado no Sesc São Paulo em parceria com duas universidades, Berkley e Universidade São Paulo (USP), mesmo momento do lançamento de Caminhos divergentes, com conferência realizada na Cátedra Edward Said, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No espaço de tempo que separou as duas visitas de Butler ao país, as forças de extrema direita cresceram, e a sua figura quase franzina se transformou num dos maiores símbolos de tudo que precisava ser combatido no pensamento de esquerda. Enquanto dentro do auditório um grupo de intelectuais discutia os fins da democracia, lá fora o que se podia constatar era o fenômeno mesmo que Butler menciona nesta entrevista: a democracia sendo corroída por dentro das próprias instituições que a sustentam.

Butler conversou com Margem Esquerda via e-mail respondendo às perguntas formuladas pelas professoras Carla Rodrigues, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), Maria Lygia Quartim de Moraes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Unifesp, e Yara Frateschi, da Unicamp, cada uma a seu modo leitora e estudiosa da obra de Butler e de seus desdobramentos na filosofia e na teoria feminista.

Entrevista5

Margem Esquerda – Você poderia contar-nos um pouco sobre sua família e formação inicial? Seu interesse pela Filosofia começou cedo, no contexto de sua experiência escolar Hebraica. Cursou depois filosofia em Yale, defendendo seu doutorado em 1984 – trabalho posteriormente publicado com o título Subjecs of Desire [Sujeitos do desejo].6 Você poderia nos falar mais sobre seu percurso e os motivos que a levaram a enfrentar o tema da influência de Hegel na filosofia francesa do século XX?

Judith Butler  Na verdade, fui obrigada a estudar filosofia com o rabino como uma espécie de “punição” por ter me comportado mal nas aulas do curso regular da Escola Hebraica. Eu era barulhenta, fazia interrupções e às vezes matava aula. Acredito que também interpelava o professor de uma maneira que não era considerada aceitável. De qualquer modo, fui enviada ao rabino, que no começo estava muito bravo. Então ele perguntou o que me interessava, e mencionei a ética existencial, a excomunhão de Spinoza da Sinagoga na Holanda e se a filosofia alemã tinha influenciado a ideologia nazista. Eu vinha, com certeza, estudando por conta própria desde os 14 anos, mas não me lembro exatamente porque escolhi esses tópicos. A estrutura inicial para todo meu pensamento filosófico foi a filosofia judaica, assim como minhas formas iniciais de pensar a filosofia, apesar de que de alguma maneira Kierkegaard foi adicionado a essa mistura.

Houve também o período, em torno de 1970, em que estava lendo livros e interessada no movimento do Black Power. Quando entrei na universidade, estudei filosofia, mas, ao mesmo tempo, também literatura, deslocando-me de um campo a outro, apesar de meus trabalhos para os seminários de literatura não serem aceitos para filosofia. Estudei Hegel com Sheyla Benhabib (um pouco mais velha do que eu) na Universidade de Yale e, encorajada por meus professores, fui para Heidelberg com uma bolsa da Fulbright, quando me concentrei nos cursos do idealismo alemão, na metapsicologia de Freud e também cursei uma disciplina na Escola de Teologia sobre as origens do antissemitismo no Novo Testamento – um tema controverso.

Quando retornei para a Universidade de Yale, estudei filosofia marxista, fenomenologia e também Hegel. Foi então que percebi que alguns aspectos do trabalho de Hegel eram utilizados pelo criticismo literário e pela psicanálise, e pensei que seria bom retornar para a filosofia para ver a inter-relação entre desejo e reconhecimento. O que mais me interessava é que essas formas de reconhecimento poderiam permitir certos tipos de desejos, e que esse desejo, o desejo de ser (Spinoza) e o desejo de ser reconhecido (Hegel) levantavam questões ao mesmo tempo existenciais e sociopolíticas.

ME – Seu próximo livro, Problemas de gênero, teve uma enorme repercussão mundial. Você comentou que foi a indignação com o descaso do governo com a epidemia do vírus HIV naquele ano o que a estimulou a escrever a obra. Hoje, quase trinta anos depois, o livro se firmou como uma obra de referência internacional. Quais são seus pontos fortes e fracos numa leitura atual?

JB – O livro investigava vários tipos de teoria, especialmente francesas, e tentava criar um espaço dentro do feminismo para perspectivas que foram desde então chamadas queer. Eu não esperava ser tão amplamente lida, e certamente deveria ter escrito de uma maneira mais acessível. Nas aulas dos Estudos sobre Mulher, supunha-se sempre que as mulheres eram mães ou no caminho de o serem, e que a heterossexualidade era frequentemente o suporte do desejo. Assim, apesar de o livro ter a intenção de ser uma crítica à heteronormatividade no feminismo, ele foi publicado ao mesmo tempo que Epistemology of the Closet [Epistemologia do armário], de Eve Sedgwick, e das publicações de Teresa de Lauretis, Michael Warner e David Halperin, que juntas formaram uma nova forma de investigação: a teoria queer. Foi um momento importante, mas nos anos subsequentes a teoria queer se distinguiu do feminismo.

Houve muitas críticas ao meu trabalho e ao trabalho do primeiro grupo anglo-americano de teóricos queer: éramos principalmente brancos e não nos engajávamos suficientemente com raça e racismo. Não perguntávamos sobre as perspectivas queer do Sul Global, e alguns não levavam em consideração os devastadores processos econômicos, deixando isso a cargo de outros campos do saber. Alguns dos teóricos do pensamento queer pensavam que nós éramos muito literários ou filosóficos, e eles queriam ver as ciências sociais mais plenamente engajadas. Quando os movimentos trans e travestis se fortaleceram, a teoria queer foi um importante aliado. O movimento dos queers of color,7 os queers por justiça econômica e o engajamento queer nas políticas de migração são agora os lugares em que o movimento está sendo definido, com a valorização das alianças sobre as identidades.

ME – Sua teoria da performatividade de gênero tem sido associada, frequentemente, a O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, ou usada para taxá-lo como “ultrapassado”. Como você entende o legado de Beauvoir em seu pensamento?

JB – Simone de Beauvoir é sempre relevante. Foi ela que tornou claro que a biologia não é o destino, que nossas vidas não são totalmente determinadas antecipadamente pelo sexo com que somos designados. As pessoas que discordam da minha (breve) leitura de seu trabalho desejam manter a categoria “mulher” no centro das análises. Elas tendem a discordar das incríveis contribuições teóricas de Monique Wittig e do fato de que o gênero pode, e o faz, exceder o binário.

ME – Você afirma ser “uma teórica feminista antes de ser uma teórica queer ou uma teórica gay ou lésbica”. E acrescenta: “Meus compromissos com o feminismo são provavelmente os mais originais. Problemas de gênero foi uma crítica à heterossexualidade compulsória no feminismo, e as feministas eram as minhas interlocutoras. No momento em que escrevi o livro não havia estudos gays e lésbicos tal qual eu os compreendo”.8 Qual é o valor do termo queer hoje, e quais são as consequências de se ter construído uma “teoria queer”?

Como mencionei antes, eu não construí a teoria. Outros definiram os termos e os patamares dos debates. Fui chamada de teórica queer muito antes de ter me firmado como uma. Mas é somente fora dos Estados Unidos que sou considerada fundadora da teoria queer. Isso tende a apagar a genealogia do movimento. Agora a teoria queer alia-se com as lutas trans e também com os movimentos feministas contra a violência, com o luta pelos direitos dos deficientes e com todos que lutam pelos corpos não normativos. O surgimento de coletivos e escritos queer of color trouxe formulações interseccionais e antirracistas para o movimento e também na maneira de contar a história do racismo. Agora temos também o “queer decolonial” que agregou muitas vozes para o campo de estudo e para o movimento, inclusive muitas acadêmicas ativistas no Brasil.

ME – Com muito atraso, o livro Debates feministas,9 originalmente de1995, foi recentemente publicado no Brasil. Como você avalia hoje aquele debate? A teoria crítica e o pós-estruturalismo são mesmo irreconciliáveis, ou é possível a reconciliação em algum termo? Embora muito importante e produtivo teoricamente, suscita desconforto a ausência de teóricas negras naquele debate. Como isso se deu na época? De maneira mais geral, como você avalia o andamento da conversa entre teóricas e ativistas negras e brancas nos EUA?

JB – Curiosamente, eu trabalho hoje em dia mais centrada na teoria crítica do que no pós-estruturalismo. Mas minha tarefa é questionar a forma global assumida atualmente pela teoria. Os vários autores denominados da “Escola de Frankfurt” permanecem importantíssimos, e, dado que fomos todos parcialmente treinados nessa Escola, debatemos sobre as ligações entre teoria crítica e feminismo. Benjamin e Arendt são agora centrais para meu pensamento. Penso que uma parte demasiadamente grande do feminismo e da teoria queer partia de pressupostos brancos, nem sempre sabendo como assinalar essa realidade e se contrapor a ela. Nos EUA, alguns dos mais importantes trabalhos do feminismo queer of colour veio de Jasbir Puar, mas também de Fred Moten e David Eng, Tavia N’gongo, Nadia Ellis, Sara Ahmed, Juana Rodríguez. Esses todos são importantes escritores que mudaram o perfil do campo, e isso foi incrivelmente importante. A lista global seria muito mais longa!

ME – No prefácio à segunda edição de Subjects of desire, você escreveu: “Em certo sentido, todo o meu trabalho orbita em torno de um conjunto de perguntas hegelianas: ‘qual é a relação entre desejo e reconhecimento e a que se deve que a constituição do sujeito suponha uma relação radical e constitutiva com a alteridade?’”.10 Até que ponto as suas formulações pós-hegelianas, a partir de O clamor de Antígona ou ainda em Relatar a si mesmo, nos permitem afirmar que há no seu pensamento uma superação de Hegel?11

JB – Digamos que Hegel continua projetando uma sombra sobre o meu trabalho, embora, se tomado isoladamente ele não constitui um parâmetro suficiente para o que faço atualmente. A ideia de “negação determinada” é importante para Hegel e para Marx; a ideia de que a definição de uma coisa é definida pelo que exclui e nega. Derrida também parte dessa ideia, levando-a para uma outra direção. Suponho também que compartilho do pressuposto de que aquilo que somos enquanto sujeitos depende fundamentalmente das relações sociais que nos formam e daquelas nas quais estamos engajados. Lá onde os termos do reconhecimento estão ausentes ou foram suprimidos, é nesse nível em que temos de lutar para produzir os termos do reconhecimento que tornam uma vida vivível. Mas não acredito que os termos do reconhecimento estejam separados dos campos da política e da economia. As duas esferas se condicionam mutuamente.

ME – Seguindo por essa mesma linha, gostaríamos de tomar o tema do luto e da despossessão, que, embora estejam presentes desde o início da obra, vão-se consolidando, sobretudo a partir de Precarious Life [Vida precária] Quadros de guerra.12 Neste segundo livro, parece haver uma questão pós-hegeliana fundamental, que é pensar não mais apenas no reconhecimento, mas também no que fornece as próprias condições para que haja reconhecimento. A pergunta é se é possível tomar a perda como fundamento negativo com o qual se pode reconstituir uma ideia de vida em comum?

JB – Suponho que isso seja pós-hegeliano. É Michel Foucault quem me ajuda a colocar a questão se os termos do reconhecimento estariam limitados a um campo especifico, e, assim sendo, se existiriam limites histórico-políticos daquilo que é passível de ser reconhecido [recognizability] que podemos expor criticamente como os limites do pensável. Isso é importante na descrição das condições daquelas vidas que não são nem reconhecíveis como vidas a serem preservadas e lamentadas. É difícil assinalar a perda de uma vida que nunca contou como vida.

ME – Se a pergunta é por que algumas vidas são mais preservadas, e outras, descartadas, a resposta pode deixar de lado o poder econômico? Em seus escritos mais recentes13 esse tema se acentua e é como se o debate sobre precariedade se deslocasse em direção ao debate sobre a precarização da vida a partir das políticas neoliberais de desmonte do Estado de bem-estar social. Ao mesmo tempo, parece-nos que o trabalho de sua companheira, Wendy Brown, ganha mais influência na sua escrita, de modo que a crítica à democracia liberal toma um rumo muito próximo ao que ela propõe.14

JB – Claro que eu aprendi muito com Wendy Brown e sua análise do neoliberalismo, especialmente do processo de financeirização e de como a precarização foi intensificada: o trabalho torna-se temporário; serviços públicos básicos como habitação e saúde são “terceirizados”, e populações são frequentemente abandonadas por formas de neoliberalismo que somente incentivam o autoempreendedorismo individual. Meu trabalho recente sobre a não violência é um esforço para articular um imaginário antineoliberal – um imaginário no qual as relações sociais e as obrigações de cada um para com o outro sejam mais importantes do que a automaximização individual e do que as políticas de despossessão levadas a cabo pelas forças conjuntas do Estado e da economia.

ME – Caminhos divergentes é um livro em que você performatiza o encontro entre pensadores judeus (Arendt, Lévinas, Benjamin) e palestinos (Said) para apontar a possibilidade de binacionalidade entre Israel e Palestina, ou, dito de outro modo, para fazer a crítica à violência colonial de Israel sobre a Palestina e, com isso, fazer a crítica aos modos violentos de formação do Estado-nação. Para 2020, está anunciado o lançamento de seu livro A força da não violência. Até que ponto a não violência tem a força de vencer a violência intrínseca ao Estado-nação?

JB – Essa pergunta parte do pressuposto de que a não violência é um instrumento fraco. Mas estou interessada em repensar as ideias de fraco e forte. Não acredito que a não violência emerja de uma região calma da alma. A greve revolucionária é uma sucessão de atos não violentos e coloca a questão: como impedir a reprodução de um regime violento e explorador? Se estivéssemos nesses números e redefiníssemos a tática para nosso tempo, veríamos uma nova versão de força, uma que já foi moldada pelo Ni Una Menos e pelas centenas de milhares de mulheres e seus aliados que foram para a rua como parte da greve feminista.

ME – Logo que Trump foi eleito, você refletiu sobre como a intelectualidade progressista havia sido pega de surpresa pela dimensão desse avanço da direita.15 Como você avalia essa questão hoje, passados dois anos do governo dele, e levando em consideração a eleição de outras figuras parecidas em outros países do mundo, inclusive no Brasil? Como definir esse fenômeno?

JB – Acredito que estamos testemunhando uma nova forma de fascismo, na qual nem sempre se ensaia um rompimento explícito com a democracia e que às vezes funciona dentro de suas estruturas. O problema agora não é tanto um homem extremamente carismático, ou mesmo a redenção da nação (embora isso certamente opere no Brasil). O intenso sentimento de precariedade induzido pelas forças econômicas e financeiras levou à xenofobia, homofobia, antifeminismo, intensificação do racismo, uma sequência de reações de ódio contra os movimentos sociais que buscam maior igualdade e liberdade para os que estão nas margens, inclusive na prisão – o lugar último da privação de direitos.

ME – No último dia 8 de março foi publicado em diversos países o manifesto Feminismo para os 99%.16 Como você se posiciona a respeito do projeto desse manifesto e das mobiliazções políticas em torno dele? Você concorda com a ênfase que as autoras conferem, na esteira do feminismo marxista, ao marcador social de classe? Isso acarreta algum prejuízo para a compreensão de outras formas de sujeição, como o racismo e a LGBTQIA+fobia?

JB – Não há de forma alguma prejuízo. Classe é muito importante. Mas temos de perguntar o que historicamente aconteceu com o conceito de classe quando a própria noção de trabalho mudou. Por que, por exemplo, o termo “precariado” parece substituir o de “proletariado”? Em parte, a natureza temporária do trabalho, a destruição dos sindicatos e a radical despossessão das vidas por meio da mudança climática e a perda do Estado de bem-estar social têm de ser enfrentados como uma formação contemporânea que reflete a nova ordem econômica do neoliberalismo. Se chamarmos todas as formas contemporâneas de despossessão de “opressão de classe”, estaremos usando uma velha linguagem que falha em se opor à violência da acumulação do capital durante nosso tempo.

O livro mencionado é certamente muito importante, mas ele algumas vezes soa como um evangelho buscando sustentar a reputação da velha tradição do feminismo marxista em vez de uma teoria crítica que compreende a violência não somente da exploração do trabalho das mulheres, como também da acelerada desaparição da própria ideia de um trabalho estável. Tal como o movimento Occupy, é essencial chamar a atenção para como a riqueza é agora apropriada e acumulada por uma pequena porcentagem de pessoas ao mesmo tempo em que muitos outros estão expostos à pobreza e despossessão. Assim, essa radical e obscena desigualdade tem de ser denunciada em todos os aspectos do movimento feminista, assim como o feminicídio, a violência contra os migrantes, a homofobia e a transfobia. Temos de achar uma maneira de articular todas essas dimensões do movimento e renovar nossa teoria social para impedir a devastação do presente, inclusive às florestas tropicais e os lugares de promessa para uma nova aliança.


Hoje, quarta-feira (07/02) às 14h, não perca o lançamento antecipado de Quem tem medo do gênero?, de Judith Butler, com Amanda Palha, Carolina Iara Marília Moschkovich, mediação de Dani Avelar, na TV Boitempo: